Os Estados vão triunfar sobre as Big Techs ou serão as Big Techs sobre os Estados.

Não cometa o erro de pensar que o que está acontecendo agora se resume a tarifas. Estamos à beira de grandes transformações na geopolítica e na economia mundial. O colapso do modelo de ordem liberal multipolar, vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, levanta incertezas profundas sobre o futuro. Essa é a grande questão que alimenta a instabilidade e os vai-e-vens do trumpismo em sua política externa. A superfície econômica — e as tarifas — escondem o verdadeiro objetivo geopolítico: reverter a perda relativa de poder dos Estados Unidos.

O governo Trump se afastou drasticamente da ordem internacional. Abandonou o Acordo de Paris, a Organização Mundial da Saúde e o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Suspendeu o financiamento à Organização Mundial do Comércio e à agência da ONU para os refugiados palestinos. Rejeitou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Convenção dos Refugiados de 1951. Atualmente, revisa todos os tratados com organizações multilaterais dos quais participa, avaliando se deve ou não manter seu apoio.

O objetivo da política “America First” é acelerar a fragmentação de uma ordem multilateral já enfraquecida. Mas será que esse colapso também pode abrir novas possibilidades para a cooperação internacional? A ausência dos Estados Unidos pode remover um dos principais obstáculos — historicamente falando — às tentativas anteriores de colaboração global, abrindo caminho para acordos mais ambiciosos e eficazes.

As novas tecnologias desempenham um papel crucial na estratégia de uma nova ordem mundial promovida pelo trumpismo. Por um lado, elas podem ampliar o acesso à educação, melhorar os serviços de saúde e públicos, reduzir a corrupção, entre outros benefícios. Por outro, podem aprofundar ainda mais a desigualdade. Muitas pessoas perderão seus empregos, já que a Inteligência Artificial (IA) irá substituí-los.

Se tivermos apenas IA, sem uma visão política e ideológica de inclusão, essa tecnologia poderá acirrar as desigualdades e se transformar em Burrice Artificial (BA). Muitos líderes do setor tecnológico nos EUA, inclusive próximos a Trump, são libertários — defensores da fusão entre poder tecnológico e estatal. Isso pode originar uma estrutura política alarmante, caso se concretize.

Essa tendência de fusão indica que o capitalista à frente de uma Big Tech não apenas impulsiona os lucros do mercado de ações, mas também controla aspectos da sociedade civil, da política e dos assuntos internacionais — tradicionalmente reservados aos Estados. Na última década, esses capitalistas e suas empresas passaram a transformar a ordem global definida pela Paz de Vestfália há 400 anos. Aquela ordem podia ser descrita como unipolar, bipolar ou multipolar, a depender da distribuição de poder entre os países. Hoje, está em formação uma nova ordem na qual grandes empresas de tecnologia disputam com os Estados a influência geopolítica. Elas se tornaram atores soberanos sobre o espaço digital — e, cada vez mais, também sobre o mundo físico.

Em fevereiro de 2022, quando forças russas avançaram sobre Kiev, a Ucrânia enfrentou uma vulnerabilidade crítica: com sua internet e comunicações sob ataque, tropas e lideranças estavam prestes a ficar no escuro. Elon Musk, chefe da Tesla, SpaceX, X, xAI, Boring Company e Neuralink, interveio. Em poucos dias, a SpaceX enviou milhares de terminais Starlink à Ucrânia e ativou o serviço de internet via satélite sem custo. Isso possibilitou comunicações, defesa contra ataques cibernéticos, análise de dados de inteligência e operação de drones que impediram a derrubada do sistema digital ucraniano e da sua estrutura de comando — evitando a tomada da capital. A Rússia poderia ter vencido a guerra em poucas semanas, ou até dias. Por manter o país online, Musk foi saudado como herói.

Mas essa intervenção pessoal expôs riscos. Meses depois, a Ucrânia pediu que a SpaceX estendesse a cobertura do Starlink à Crimeia, ocupada pela Rússia, para realizar um ataque de drone submarino contra bases e navios russos. Musk recusou, alegando que isso causaria uma escalada na guerra. Nem mesmo os apelos do Pentágono foram suficientes para convencê-lo. Um cidadão privado, não eleito e sem responsabilidade institucional, frustrou unilateralmente uma operação militar em uma zona de guerra ativa — revelando que governos têm pouco controle sobre decisões que impactam diretamente sua segurança nacional e seus cidadãos.

O poder das Big Techs se aprofundou ainda mais no fim de 2022, com o lançamento dos grandes modelos de linguagem e a explosão da Inteligência Artificial. O desenvolvimento e a implementação de sistemas avançados de IA exigem imensos recursos computacionais, vastos volumes de dados e engenheiros altamente especializados — todos concentrados em poucas empresas. Esse oligopólio digital decide e compreende o que seus modelos fazem, como, onde e por quem são usados. Mesmo que os reguladores conseguissem desenhar mecanismos eficazes de governança para conter a tecnologia atual, o ritmo exponencial de avanço da IA tornaria esses modelos rapidamente obsoletos. A institucionalidade não precede a inovação — é o contrário.

À medida que a IA se torna mais poderosa e central para a competição econômica, militar e geopolítica, as empresas que a dominam se tornam também potências geopolíticas.

A questão central é que as grandes empresas de tecnologia deixaram de ser determinantes apenas nos espaços virtuais. Elas expandiram sua influência no mundo físico por meio de produtos e serviços que se tornaram infraestrutura crítica: data centers, computação em nuvem, redes de satélites, semicondutores e ferramentas de segurança cibernética sustentam, cada vez mais, a economia, a segurança nacional e a gestão pública de muitos países.

O que está em disputa não é apenas o controle do espaço digital por parte dos Estados, nem uma guerra fria tecnológica entre EUA e China — dois Estados disputando a hegemonia, mesmo que executada por suas respectivas empresas. Algo como o que se vê em Blade Runner.

O futuro está assumindo uma forma híbrida. Não haverá um triunfo claro dos Estados sobre as empresas, ou das empresas sobre os Estados. Em disputa estão dois modelos: o norte-americano, no qual os atores privados moldam cada vez mais a política nacional, e o chinês, no qual o Estado exerce controle quase total sobre o espaço digital.

O resto do mundo se vê pressionado a se alinhar a um ou outro modelo — mesmo que com relutância. Porém, ambos oferecem pouco em termos de responsabilidade democrática e liberdade individual. A escolha, portanto, é menos binária do que parece. À medida que o poder da tecnologia e o do Estado se fundem em todos os lugares, a verdadeira questão não é mais se as empresas de tecnologia rivalizarão com os Estados por influência geopolítica — mas se as sociedades e as liberdades democráticas conseguirão sobreviver a esse novo desafio.

E o Brasil onde fica?

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Ilustração: Mihai Cauli
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