
Quando criança, ouviu de sua mãe: “não aceite nada de estranhos!…”. Américo, obediente, aprendeu a desconfiar. Recusou coloridas balas, comidas cheirosas e outras suculências em nome da prudente desconfiança. Demorou a fazer amigos daqueles verdadeiros, para a vida toda, por desconfiança genérica em gente desconhecida. Mesmo depois de conhecida a pessoa, a desconfiança ainda lhe freava as intimidades. Cresceu assim, ressabiado mas seguro. Crente de que o mal seria coisa vinda de fora, coisa de gente estranha.
Volta e meia pensava em suas desconfianças. O que um estranho poderia ter lhe dado quando criança? Veneno? Sonífero? Algum elixir mágico, místico, maléfico? Fantasiou muitas possibilidades de coisas más que lhe chegariam na forma de doces, bebidas, bolos, presentes e convites, mas nunca lhe passou pela cabeça que um estranho pudesse lhe dar o mais mortal dos venenos: ideias.
Era ainda criança, quase adolescente, quando aceitou de um estranho a ideia de que mulheres não pensam direito. Achou engraçado o jeito com que o estranho ridicularizava uma mulher. Mais criança do que adolescente, ainda não as via como desejáveis, mas como diferentes, de gostos diferentes, de brincadeiras diferentes. Envenenado, o diferente virou ridículo. Do ridículo, passou a inferiores. Quando os hormônios lhe tomaram os sentimentos, passaram a objetos, coisas de se usar e largar depois. Cresceu envenenado de misoginia.
Quase na mesma época, um pouco antes, talvez, aceitou de estranhos piadas sobre gente preta. Achou engraçado. Américo gostava de piadas. Gostava de ser engraçado e fazer rir. Riu e fez rir tratando gente preta como se não fosse gente. Como se fosse bicho. Como se fosse burra. Como se merecesse a vida sofrida que os via viver quando os percebia pela janela do carro. Cresceu se achando mais bonito, cheiroso, inteligente, honesto, engraçado e merecedor do que gente preta.
Já adolescente, quase adulto, Américo mergulhou na internet. Entrou e saiu de redes sociais só para entrar em outra. Na medida em que se conectava com estranhos na rede, se desconectava de gente de verdade nas ruas. Sua vida foi se virtualizando. E sua ideia de gente estranha foi mudando. Quem escrevia ou dizia coisas com as quais ele não concordava era o novo estranho. Os estranhos que diziam ou escreviam o que gostava de ouvir ou ler eram algo familiar.
Seus novos amigos não eram amigos de verdade. Não os via. Não os abraçava. Nunca estiveram frente a frente para que algum deles lhe olhasse no fundo dos olhos e lhe dissesse verdades que precisaria ouvir. Ainda assim, aceitou suas ideias estranhas. Entendeu com eles os porquês da sociedade ser como é, do país ser como é. Aceitou deles a ideia de que aqui nada vai para frente por causa dessa gente – quase toda preta – preguiçosa. Ou por causa dessas mulheres que insistem em ocupar lugares mais adequados, naturalmente, a homens.
Aceitou dos estranhos sem rosto das redes que este mundo está invertido. Virado ao avesso por esses comunistas. Gente ambiciosa, trambiqueira. Gente de estranhas ideias de igualdade e inclusão. De distribuição. De desrespeito por quem tem méritos verdadeiros, porque nasceu com a cor certa e com a anatomia correta entre as pernas. Méritos naturais e não méritos inventados por odiosa ideologia.
Américo não ouviu sua mãe. Não ouviu de verdade. Agora, está velho demais para ouvir qualquer coisa que não seja o eco dos venenos em sua cabeça.
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Ilustração: Mihai Cauli
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