Esta é a eleição nos Estados Unidos, das que eu me lembre, em que mais fortemente estão julgando valores. É uma eleição muito peculiar, em que o presidente norte-americano é bem diferente de todos os que o antecederam no estilo, na forma, na agressividade e nas ideias. E isso terá um impacto nos Estados Unidos e no mundo.

Quando o Trump ganhou a eleição anterior, eu disse que o pior do Trump é o mau exemplo. Se a maior democracia do mundo elege uma pessoa como o Trump, qualquer país pode querer o mesmo. Eu não imaginava que nós fossemos eleger alguém tão parecido, de certa maneira até uma caricatura do Trump. E nós sabemos qual foi a consequência e o impacto aqui na região. Há muito outros fatores que contribuíram para a eleição de Bolsonaro, mas obviamente a presença de Trump nos Estados Unidos, a presença da extrema direita nas proximidades e dentro do governo norte-americano obviamente teve uma influência e continua tendo.

Uma das características do déspota é que ele vai replicando. Outros déspotas se inspiram nele. Todos os países que giram em torno de um país hegemônico tendem a se inspirarem um pouco nele. Trump, e aqui o Bolsonaro, não agem como presidentes de um sistema de equilíbrio, de balanço de poder. Eles agem como se fossem monarcas e os outros Poderes são adversários. Eles gostariam, mas não podem acabar com esses Poderes. Então, vão testando sempre os limites. Isso é verdade nos Estados Unidos e é verdade ampliada aqui no Brasil – houve uma moderação agora, por fatores vários, mas é essa a tendência e é esse o espírito. Uma vitória do Trump continuaria inspirando essa mesma linha.

BIDEN E A AMÉRICA LATINA

A influência norte-americana é grande, pelo menos em uma parte do mundo, e certamente muito grande na América Latina e no Brasil.

Eu não vejo Biden adotando a mesma posição agressiva, por exemplo, em relação à Venezuela. Não é que mudará a substância radicalmente, mas a maneira mudará. Não vejo o governo Biden entrando na aventura de um golpe grosseiro na Bolívia. Tem sempre aqueles interesses do chamado “Estado profundo norte-americano”, mas vai haver uma moderação nisso. Na América Latina, o impacto da eleição do Biden é muito positivo, pela influência que os Estados Unidos exercem. Seria muito ruim um governo claramente antidemocrático ser reeleito com todas as suas ameaças. Eu espero uma relação menos agressiva, ainda que estruturalmente os interesses norte-americanos não mudem.

Por outro lado, países que já conseguiram se libertar das peias do neoliberalismo, como é o caso da Bolívia, da Argentina e do Chile, ainda que projetado para a frente, para a nova Constituição, esses países vão enfrentar uma potência extremamente agressiva, que fará todas as pressões para ou derrubá-los ou criar dificuldades em seu caminho e uma potência que vai procurar se apoiar, e terá apoio dentro da América do Sul, no Brasil. E isso é muito ruim para nós. Nós estamos vivendo um momento especialmente ruim.

A questão do exemplo se mistura também em políticas, de uma maneira prática. Por exemplo, eu acho muito improvável que o governo Biden promova uma invasão da Venezuela, o que não quer dizer que vá reconhecer o Maduro, que vá ter melhor relação. Mas vai tentar outros caminhos e para isso não pode ter alianças com uma pessoa como o Bolsonaro, que não tem capacidade para isso, não tem intenção disso. Como diz o francês, não tem o physique du rôle. No caso, não tem a psychique du rôle… Não tem a estrutura mental para uma política de reaproximação.

Então, sem abandonar os interesses norte-americanos, o Biden vai procurar uma aliança maior com outros países. Inclusive eu acho que com a Argentina. O que não é mau para a América Latina.

Aqui no continente a luz no fim do túnel que está aparecendo com esses movimentos só vai se ampliar quando houver uma mudança no Brasil. É muito difícil pensar numa integração verdadeira na América Latina sem o Brasil. É um dado da realidade. Por exemplo, a Argentina gostaria de, através do Brasil, ter uma maior aproximação com os Brics. Claro que ela pode tentar outro caminho, mas esse seria mais fácil e mais natural. É só um exemplo.

No Chile, a crítica ao neoliberalismo não foi feita só nas universidades, ela foi feita nas ruas. E foi a crítica das ruas que levou ao plebiscito, que foi uma grande vitória, arrancada pelas manifestações. E o presidente, apesar de ser de direita e ter recorrido a uma dose considerável de repressão, ele não viu outra saída que não admitir a Constituinte. Isso seria impensável no Brasil com Bolsonaro. A gente não pode juntar toda a direita no mesmo balaio – não que eu queira me aliar a pessoas como Piñeira ou pessoas equivalentes a ele no Brasil. Mas a maneira de agir é outra.

A DERROTA DE TRUMP E O BRASIL

Para o Brasil, como país, a eleição de Biden será boa. Obviamente que não para o governo Bolsonaro. Numa derrota de Trump se desfaz o elo entre o presidente brasileiro atual, as pessoas que o cercam mais de perto e o presidente norte-americano. Continuará a haver uma relação entre os países, naturalmente, mas esse elo se desfaz e terá uma consequência indiscutível aqui dentro. As expectativas que o Bolsonaro queria ter, mas que não estavam sendo cumpridas, esse servilismo absoluto às posições norte-americanas, ele vai ter que abandonar e procurar outro caminho, outra maneira de agir.

A derrota de Trump colocará problemas e dilemas para o governo Bolsonaro, que terá que optar entre continuar numa mesma linha em relação a direitos humanos, mudanças climáticas, a própria política em relação à América Latina, ou tentar se aproximar do governo Biden. O que seria a coisa mais sensata, mesmo sob uma perspectiva conservadora. Mas sensatez não é a moeda forte do governo atual.

Pode haver uma reação pseudo nacionalista para se opor a questões de direitos humanos, do clima. Mas isso enfraqueceria muito o governo Bolsonaro com uma ala que o apoia, ou pelo menos é tolerante com ele, que é a elite financeira do país, a própria mídia, que tem sido crítica, mas nunca frontalmente, e isso terá reflexos no Legislativo e em outras áreas.

A outra hipótese – tentar se aproximar de Biden vai ser difícil – seria ele tentar contemporizar, adotar um discurso um pouquinho menos retrógrado em matéria de mudança climática. Em direitos humanos é difícil vê-lo mudar, mas pode evitar adotar certas atitudes mais reacionárias, pelo menos nos fóruns internacionais. Se ele fizer isso, ele vai perder apoio da base dele principal. Então, ele vai ter que navegar nessa disjuntiva.

Isso nos coloca cenários novos. Ganhando Biden, o cenário da política brasileira vai mudar bastante. Como mudou lá atrás, durante o governo militar, quando se elegeu o Carter [Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos de 1977 a 1981, suspendeu apoio e ajuda econômica a ditaduras, inclusive as impostas com a ajuda e inspiração norte-americana, e a países que cometiam abusos dos direitos humanos]. A presença do Carter, que fazia a defesa dos direitos humanos e quando começava a questão ambiental, impactou aqui a evolução da política brasileira. Já tinha começado com o Geisel a “abertura lenta, segura e gradual”, mas teve um impacto positivo, sobretudo na grande mídia, que passou a falar mais em direitos humanos. Acho que isso acontecerá novamente.

ESTADOS UNIDOS E CHINA

No plano global também haverá uma diminuição da agressividade, mas aí é uma coisa mais complexa. Haverá uma distensão maior com a Europa. As relações estavam muito tensas, muito difíceis, muito crispadas. Acho que isso vai mudar. Com Biden, o “soft power” norte-americano, que foi muito abalado nesses anos, voltará a ser exercido.

As disputas com a China continuarão. É muito difícil que uma potência ultrapasse o poder da outra como maior potência econômica no mundo sem que isso tenha um impacto. Mas a maneira de tratar será um pouco distinta e o risco de isso sair do controle, virar uma guerra, um conflito, baixará. Haverá disputas da alta tecnologia, mas é capaz de haver também composições. Há muitas empresas americanas estabelecidas na China que não aprovam essa política agressiva do Trump, esse espírito de cruzada que o Mike Pompeo e outros, como Steve Bannon, introduziram, figuras da extrema direita religiosa. O Mike Pompeo se deu ao desplante de tentar convencer o papa a não renovar um acordo sobre nomeação de bispos na China!

Do ponto de vista da China, por um lado, diminui o risco de um atrito mais grave. Por outro lado, a melhoria do “poder brando” nos Estados Unidos, em termos relativos significaria um certo anteparo, um certo equilíbrio à influência da China na Europa, por exemplo.

A animosidade em relação à Rússia que é grande – menos com o Trump do que com outros – talvez se agrave um pouco.

Na grande geopolítica, eu vejo o mundo protegido de grandes desastres, como seria um grande conflito nuclear, ou como seria um desastre climático maior, ainda. Mas vejo também uma geopolítica mudando num sentido em que dá aos Estados Unidos a possibilidade de recuperar um pouco o seu poder de influência, principalmente na Europa. E por causa da Europa, também um pouco até na África.

REPOSICIONAMENTO INTERNACIONAL

Nos anos 60, quando começou a distensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, o embaixador Araújo Castro – que foi o último ministro das Relações Exteriores do Jango – falava muito em “condomínio do poder mundial”. Um condomínio entre os Estados Unidos e a União Soviética. Aí ele estava se referindo mais à parte armamentista, porque a URSS não tinha o peso econômico que hoje tem a China. Mas isso não queria dizer que não houvesse uma tensão entre eles.

Então, eu acho que esse condomínio nunca será uma coisa absoluta, até porque não são apenas dois países que estão lutando pela hegemonia, são dois sistemas acentuadamente diferentes. Têm pontos de contato, mas são acentuadamente diferentes. Mesmo que a China seja diferente do que foi a União Soviética e os Estados Unidos do Biden não sejam idênticos ao do Trump, não vão fazer uma cruzada ideológica, mas isso vai persistir como um elemento de confronto. Vai haver disputa. O que não é de todo mau, porque cria condições para que outros entrem. Eu não acredito que vá haver uma nova guerra fria, mas há sim uma dose de disputa de poder. E não só entre os dois. Há aí a Rússia, que continua sendo uma grande potência militar, por enquanto muito acima da China, a segunda depois dos Estados Unidos, sobretudo em armamento estratégico.

Há também a União Europeia, que não pode ser desprezada. Houve uma tentativa de reagrupamento. E pela primeira vez a Europa está tendo medidas fiscais a nível continental. Não vou dizer que haja uma política fiscal comum, mas a ideia de que pode haver uma dívida europeia para financiar infraestrutura, reconstrução, é uma ideia nova, que a Alemanha nunca aceitava. Isso é um avanço. A União Europeia continuará a ter um poder de atração econômica e política importante.

Então, esse mundo vai ficar um pouco mais complexo. O mundo não vai ser tão simples. Não vai ser apenas um condomínio, no sentido estrito, nem tampouco a guerra fria. Será uma coisa complexa, maior possibilidade de interação com outros países e entre outros centros de poder.

A EXTREMA DIREITA CONTRA A RAZÃO

Ainda nos Estados Unidos praticamente um empate entre forças democráticas, que apostam na solidariedade, que apostam numa visão multilateral para o mundo e democrática para dentro, e no outro lado forças defensoras de atitude totalmente autoritária, egoísta, representada pela extrema direita. Mesmo que não sejam pessoas estritamente de extrema direita, acabam sendo massa de manobra da extrema direita. Eles acreditam nisso porque eles acham que assim terão melhor chance na vida. Como aconteceu, aliás, na Europa com o nazismo e o fascismo. Isso é uma coisa muito séria nos Estados Unidos. Vamos esperar que o governo do Biden seja muito bom, que melhore o emprego, que é isso que irá possibilitar que as pessoas, pelo lado econômico, acabem vendo novos horizontes.

E no Brasil o que vemos é a mesma coisa. Todos sabemos que a ajuda emergencial teve um papel na sustentação da popularidade do presidente, mas não foi só isso. Mesmo nos piores momentos, ele conservava um número relativamente alto de apoio e pessoas que continuam achando… pessoas que falam que não podem tomar vacina porque a vacina é chinesa... Ideologizaram até a vacina. O chanceler é obviamente uma pessoa totalmente tresloucada, fora do comum, mas ele não deixa de ter lá a intuição dele. Quando fala do comunavírus”, ele sabe que esse público da extrema direita aposta nisso e muita gente de boa-fé acredita. Como acreditaram no fascismo, acreditaram no nazismo, acreditaram que os judeus haviam dada uma facada pelas costas na Alemanha.

Eu acho que esse risco é muito grande. Tem que ser um trabalho intenso. Depende de grandes figuras intelectuais, como Chomsky e outros, fazerem como Bertrand Russel fez em relação às armas nucleares, um tema erradamente abandonado, e depois em relação à guerra do Vietnam: forçar o debate, forçar o debate público! É uma tarefa de todos. E é uma tarefa que talvez não tenhamos nos empenhado tão profundamente como deveríamos. Deixamos de fazer o debate. Eu mesmo fui pouco à universidade. Estava muito ocupado com as coisas que eu achava que tinha que fazer [no governo]. Deixamos de fazer um debate público sobre todas as questões, os programas sociais do governo, a política externa. Não criamos os anticorpos contra o irracionalismo.

Outro dia eu estava relendo Paulo Freire. Não há política sem educação. Toda política é educação. E educação é isto, é debate. É muito real esse perigo que está acontecendo da prevalência de valores egoístas, de visões irracionais que se baseiam no medo, no ódio, que podem ser exploradas de maneira muito perigosa. Isso se aplica na política internacional e se aplica também à política externa, que é o que nós temos visto. A questão do debate racional, a volta do poder discutir e não ficar dominada por emoções que a pessoa não entende, exploradas por certas religiões e pela política, isso é uma discussão fundamental. Não podemos ignorar isso.

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O texto publicado é uma transcrição da fala do ex-chanceler brasileiro na live organizada pelo Observatório BR, da Fundação Perseu Abramo, com o Diário do Centro do Mundo, o site 247 e a revista Fórum, na própria noite da eleição norte-americana (04/11/20). Além de Celso Amorim, participou a professora Cristina Soreanu Pecequilo.

Responsável pela transcrição: Paulo de Tarso Riccordi, do Terapia Política.