I
Entre as imagens mais chocantes das últimas semanas está a daqueles esbeltos adolescentes israelenses tomando de assalto os caminhões de ajuda humanitária destinada a Gaza e destruindo a carga (comida) como se participassem de joguetes de verão. Mesmo com toda a perplexidade e repugnância pelos atos de barbárie que o governo de Israel está perpetrando, parece que ainda não alcançamos a dimensão real desses atos. Quem sabe daqui a 40 ou 50 anos os historiadores consigam estabelecer parâmetros para isso, se é que daqui a 40 ou 50 anos ainda existirão historiadores e relatos historiográficos minimamente críveis – tudo indica que já estamos muito próximos do colapso da própria noção de verdade.
II
Aquelas imagens são a consequência inevitável de uma sequência de atos e imagens anteriores às quais não se deram as respostas que deveriam ter sido dadas. Consequência inevitável, mas um tom acima. São seis meses de impunidade. Seis meses de cumplicidade. Seis meses de cinismo e hipocrisia. Ou haverá alguém que creia que um único e pequeno Estado seria capaz de afrontar os poderosos países europeus e mais ainda o Império se estes estivessem de fato dispostos a impedir o cometimento das atrocidades que estão sendo cometidas? Seis meses de inclementes ordens de migração forçada debaixo de ininterrupto bombardeio e metralha indiscriminada. Não se trata e nunca se tratou apenas de um objetivo militar, mas de vingança e castigo (bíblicos), obviamente associados a objetivos econômicos. Uma das matérias publicadas hoje, 15/05, pelo El País, dizia: “Israel aproveita a crise em Gaza para desencadear a colonização da Cisjordânia (…) e declara como propriedade do Estado um número de hectares sem paralelo desde os anos noventa, enquanto o ministro das Finanças legaliza, na surdina, mais de 60 colônias”. Os selvagens garotos israelenses que tomaram de assalto os caminhões com comida para os encurralados palestinos seguem o modelo da política que gradativamente se assenhora do mapa europeu. E a fotografia de sua fúria gozosa é a própria imagem de um senso de humanidade em franco processo de desaparecimento, na Europa e no mundo.
III
De hoje a pouco menos de um mês, em 9 de junho, realizam-se as eleições para o Parlamento Europeu. As previsões são claramente favoráveis aos agrupamentos da direita e sobretudo da ultradireita. Desde as eleições do ano 2000, quando pela primeira vez as forças da direita se tornaram majoritárias, a relação de forças só foi piorando para a esquerda (ver artigos anteriores sobre a União Europeia). Apenas a partir de 2012, como mostra um desses artigos, aparece a ultradireita que, desde então, não parou de crescer.
Faça chuva e tempestade ou faça sol, o crescimento da direita e da ultradireita no Parlamento europeu e, de modo geral, nos governos da União Europeia, jamais se interrompeu nesse último quarto de século. É melhor, portanto, que de uma vez por todas deixemos de lado os modelos de análise que associam esse fortalecimento a crises econômicas que afetam o padrão de vida das classes médias e a fatores assemelhados. A análise socioeconômica clássica servirá para algo, mas não para jogar luz na verdadeira cara da coisa. Quem sabe será melhor se a iluminarmos aos poucos e em mais variados ângulos? O fato é que com ou sem crescimento econômico, com ou sem crise econômica, o fenômeno vem se repetindo e não é de hoje. A não ser que todas as pesquisas deem com os burros n’água, o 9 de junho vai apenas reforçar a tendência, com talvez uma única exceção: a solitária Espanha – Portugal acaba de entregar-lhes o poder. Mas e a Alemanha do SPD? Do SPD + liberais e Verdes fanáticos defensores de Netanyahu? Essa Alemanha? Por enquanto, a poucos dias da votação, as projeções são de que o “conjunto de forças à direita do Partido Popular Europeu (PPE)… obteria mais de 180 das 720 cadeiras do Parlamento”.
IV
Esse grande conjunto de forças, pelo menos por ora, está dividido em dois grandes agrupamentos, Identidade e Democracia (ID) e Conservadores e Reformistas Europeus (ECR). Dizem os analistas que há grandes diferenças entre eles e são de tal envergadura que impedem que se forme um grande e único bloco ultra na Eurocâmara – e assim é, pelo menos por enquanto. Mas se há tantas diferenças e são tão significativas, o que os aproxima? Há realmente uma liga básica que os atraia para um mesmo campo? Talvez seja como um embrião que lentamente vai delineando e firmando seus contornos. Vale a pena retomar o assunto. De qualquer forma, talvez não seja temerário desde já sugerir que o alimento essencial da psique que está na base desse conjunto de agrupamentos possa ser sintetizado numa expressão: a negação do outro. Um outro que tem mais de uma cara, como veremos num próximo artigo.
V
A este admirável pano de fundo poderíamos acrescentar aquela que talvez seja a mais preciosa das cenas de A Zona de Interesse. O casal está sobre um pequeno píer à margem do rio Sola, a pouca distância de casa e do campo de extermínio dirigido pelo marido. Pouco antes, Höss havia comunicado à sua fiel Hedwig que lhe haviam designado um novo posto e que, portanto, teriam que se mudar, deixando a encantadora casa com jardins e piscina onde desfrutavam a vida doméstica com as crianças. Uma vida idílica, protegida por muros fortificados contra os horrores do mundo exterior. Como era de se esperar, o rechaço de Hedwig foi imediato e, por mais que tivesse tentado, Höss não conseguiu escapar-lhe ao cerco. Hedwig está francamente determinada a não deixar para trás os confortos e a segurança daquela adorável existência. Era a essência, o sonho de toda uma vida. Assedia o marido com um batalhão de argumentos.
- “– Por que essa transferência?
- “– Mudanças estruturais.
- “– O que significa isso?
- “– Não especificaram. Mas não atinge só a mim…
- “– Quando?
- “– Logo.
- “– Logo quando?
- “– Quando me avisarem. (…) É um assunto político.
- “– Fala com Hitler.
- “– Não sejas ridícula.
- “– Não sou.” – encerra com autoridade a esposa e logo concede ao marido que, ele sim, se vá, mas apenas ele, para assumir o posto para o qual foi designado. Ela e as crianças, ficam.
- “– Teriam que me tirar daqui arrastada. Você sabe muito bem. Aqui é nosso lugar, Rudolf. Vivemos como sempre sonhamos… com tudo o que desejamos bem na nossa porta.”
Que espantosa tenacidade. Que gigantesca estreiteza de horizontes. Perfeitamente concentrada nos seus interesses e nos de sua família. E em mais nada. Uma dedicada e eficiente profissional. Cem por cento focada. (Como uma égua puxando uma carroça.) O que mais poderia importar? – nos ensina Hedwig. Suas razões e as do conforto dos seus, se não estão acima das razões de Estado, é somente quando – e se – coincidam com elas. “– Fala com Hitler…”, afinal vivemos como ele nos disse para viver: “vão para o Leste. Lá há espaço para viver.” Sem máscaras, sem disfarces, genuína, a imagem especular perfeita dos eleitores contemporâneos – e dos meninos israelenses que atacaram os caminhões de socorro a Gaza.
VI
Desde a primeira cena de A Zona de Interesse, aquela na qual cada um de nós poderíamos nos encaixar muito à vontade e sem qualquer discriminação, entre iguais, até o diálogo do casal à beira do caudaloso rio na Polônia ocupada, parece muito evidente que a família Höss e sua paradisíaca residência são, sim, do comandante de Auschwitz, mas são também e, sobretudo, as nossas, as dos nossos vizinhos, amigos ou simples conhecidos ou, de qualquer modo, as de toda aquela imensa minoria que ocupa os ultraprotegidos territórios dos privilegiados das cidades onde vivemos agora mesmo, no início deste século tão promissor. Do outro lado dos diferentes tipos de muros que nos protegem, estão os horrores que nós próprios e nossos privilégios produzimos: a guerra, a persistente miséria material e espiritual, a brutalização das existências cotidianas, a violência e a mortandade nas bordas das grandes cidades. E muros, muros muitas vezes disfarçados, mas cada vez mais agressivos. Muros físicos e muralhas políticas.
VII
Do outro lado desses muros que protegem nosso conforto não está necessariamente Auschwitz. Há uns outros tantos círculos de degradação e violência antes de alcançarmos o último círculo do inferno.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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