São muitas as alternativas de conhecimento da cidade através da experiência sensível. Dimensões diversas conformam e caracterizam as grandes metrópoles: espaço, odor, tempo, movimento e sonoridade do lócus urbano. Me interessa singularmente nesta crônica, o tema da sonoridade, partindo da sua natureza física como subjacente e reveladora de um modo de vida, portanto, a sua observação numa vertente sociológica. Para esta reflexão, valho-me de duas observações apreendidas diretamente na vivência cotidiana; e outra, de forma vicária.
Ao findar do curso de economia, meados da década de setenta, interessei-me pelo estudo das condições de vida dos trabalhadores. Dediquei-me ao tema da habitação, estudando o fenômeno do loteamento popular. Estava realizando um trabalho de campo em Nova Iguaçu, cidade da periferia do Rio de Janeiro, uma “cidade dormitório”. Parte de uma conturbação da Baixada Fluminense, e no âmbito de uma ficção político-administrativa denominada de Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esta área de vertiginoso crescimento populacional e habitacional, devido ao encarecimento e à especulação com o preço da terra na área da capital, à expulsão de moradores pobres dos “bairros nobres” promovida pela política de “remoção das favelas”, à migração, e devido também, à própria natalidade local.
Em face de tal situação, restava à população pobre a moradia nos loteamentos das periferias, distantes e sem infraestrutura, em que os primeiros lotes eram sub-precificados ou mesmo doados como forma de atração de moradores. Esta era a condição básica para dar início à ocupação e, também, para a pressão sobre o poder público visando à obtenção de serviços e melhorias básicas. Eram áreas de antigo cultivo agrícola, degradadas e improdutivas, que, por esse processo, tornavam-se fonte de ganância dos especuladores com a terra. Outra alternativa seria morar em um conjunto habitacional popular, desde que o pretendente tivesse renda, emprego formal e fosse selecionado em longa fila para realizar o “sonho da casa própria”, segundo dizia a propaganda oficial. Tal habitação a ser comprada através do famoso BNH, ao qual quanto mais se pagava, mais se devia, segundo as regras de financiamento vigentes à época, a ponto do órgão ser considerado a “bomba de nêutron brasileira”, pois morria o cidadão, mas a edificação ficava intacta, como base da garantia do financiamento.
No imaginário público, aquelas eram cidades violentas como propagado pela mídia sensacionalista, ainda que boa parte de seus cadáveres tivessem origem exógena, e lá chegavam através das “desovas do esquadrão da morte” e de outros tipos de grupos paramilitares. A imposição do medo, a violência, a necropolítica, sempre estiveram presentes como elemento de controle e de repressão aos segmentos populares. E vivíamos em plena ditadura, cujo ideário previa o controle da população em todas as dimensões da vida social. O “Brasil grande”, o Brasil do “Ame-o ou deixe-o”.
Terminada a minha jornada diária da pesquisa de campo, próximo às três da tarde, resolvi permanecer no local para visitar um amigo que retornaria do trabalho no centro do Rio, no final do dia. O aguardei em um botequim, em uma pracinha, onde se localizava a principal estação de trem. Um ambiente que me lembrava as apalermadas tardes em minha cidade no interior fluminense, em que até o tempo parecia estar parado. Vez por outra, um movimento: um cachorro, uma bicicleta, uma sombrinha e uma velhinha. Sol escaldante, só faltava a chuva, do casamento da viúva. A mesa na calçada e a cerveja gelada me pacificavam naquela situação melancólica, como se estivesse experimentando um sociológico blues.
Entardeceu, e ali estava defronte as duas grandes vias de acesso ao centro da cidade. Repentinamente, percebo um som que vinha de longe. Uníssono, compacto, uma massa sonora, distante e em único diapasão. Todos os motores se juntaram em um mesmo som, que gradativamente se aproximava da cidade. Sinfonia de máquinas automotivas: ônibus, kombis, Fuscas, Willys, Chevrolet e Ford, embaraçados em grande solfejo. Uma nova sonoridade surgiu como concorrente no espaço, de forma simultânea, mais estridente e com entonação modular em ondas: o som do ferro, das rodas e bitolas. Lá vem o trem! A retumbante sonoridade adentrou a cidade e revelou visível o comboio de carros no início da avenida, ladeado pelo trem já em ritmo de parada na estação. Uma multidão, instantaneamente ocupou a praça e o comércio ao redor, pequenas compras em padarias, farmácias, bares e armazéns. A fala humana se misturava a dos motores, e dos trilhos. A grande massa de trabalhadores adentrava as ruas contíguas à praça, em busca de uma nova condução para alcançar suas moradias, ainda bem distantes do centro da cidade.
Meu amigo havia chegado pouco antes das seis e contei-lhe o meu estupefato sentimento de surpresa com o observado. Conhecedor daquela realidade, ele sugeriu que tomássemos mais uma cerveja, para que eu visse o restante. Eh! Mais do mesmo, o fluxo de pessoas, o som dos motores, acrescido de um falatório dos transeuntes, tomando o ouvido. Um fervor! Poucos minutos antes da sete, ele me disse que nós já partiríamos. Enquanto pagávamos a conta, a praça foi se esvaziando. Poucos carros e ônibus chegavam. A chegada dos trens seria mais espaçada e menos superlotada. E disse-me ele: “amanhã, das cinco e meia às sete horas da matina, começa tudo outra vez”. Assisti ao fim da jornada de trabalho naquele dia, em que os trabalhadores batiam o “ponto da saída” entre as 17 e 18 horas no Rio de Janeiro. Foi um grande aprendizado sobre as condições de vida dos trabalhadores brasileiros, após uma jornada extenuante. Vi um retrato da urbanização elitista das nossas cidades, em que as diferenças hierarquizam socialmente o espaço das urbes. Aquela sonoridade nunca saiu do meu corpo.
A segunda experiência vem de uma entrevista de história de vida, de uma senhora que fez a migração de retorno, após cerca de uma década, pois sentia muita “saudade da sua terra natal”. Pernambuco, 1976, morro de moradia popular em Camaragibe, ocupação típica de “favela”. A entrevistada viveu em Franco da Rocha, na periferia de Sampa, para onde migrou com os filhos, e que com o tempo construíram “várias casinhas”, em um único terreno. Narrava-me o cotidiano da vida no bairro que se iniciava antes das cinco da manhã. Onomatopeicamente, com os dentes serrados emitiu um som: Xii… Xiii…Xiiii… e assim consecutivamente. Uma panela de pressão ganhou volume sonoro uníssono de centenas. O som do cozimento do feijão dominava o amanhecer do ambiente. E o cheiro, gradativamente “ia sendo substituído pelo do café”. Era a preparação das marmitas dos trabalhadores em saída para a nova jornada de trabalho, precedida pelo repetido e extenso trabalho doméstico que apenas se iniciava. O duplo trabalho das mulheres, que também saiam para seus empregos, e que ao retornar continuariam “sua lida diária”. A sinfonia das panelas também nunca saiu do meu corpo. Desde então, sempre ressurge, fazendo pressão sob meus ouvidos.
Há quase duas décadas vivo em Sampa, no alto de Perdizes/Pompéia. Ao acordar, no alvorecer, sempre foi audível a sonoridade automotiva e carril, vinda pela marginal do Tietê. Som inicialmente distante, tênue como a luminosidade, mas que adentra o espaço urbano com os raios solares. Dia posto, a sonoridade naturaliza-se em volume de decibéis que agravam as condições ambientais da cidade, como elemento inóspito às condições de saúde dos que se submetem cotidianamente ao trabalho, nas regras impostas pelo capital. Nessas manhãs, acordado, sempre me vinha a lembrança da sonoridade das panelas de pressão antecedendo à jornada de trabalho, bem como aquela do retorno aos locais de moradia, descritas neste texto. Essa nova experiência, representando o som do início do trabalho na cidade, nos traz o alento da vida. Ainda que de forma extremamente desigual, em oportunidades e em condições de sobrevivência.
Uma excepcionalidade ocorreu em tempos recentes. Com a pandemia, a sonoridade citadina do amanhecer se manteve inicialmente. Entretanto, reduziu-se significativamente com as medidas do isolamento social. Foram quase dois meses de amanhecer e de cotidiano relativamente silenciosos, destacando-se no decorrer do dia, o barulho produzido pelas motos dos trabalhadores das entregas domiciliares. Porém, na última quinzena, com as medidas de flexibilização da atividade econômica, retornou o som, que agora veio atemorizador, anunciando a morte e a expectativa de sua proliferação. Tal fato já se constata com os mais de mil casos de mortes diárias, totalizando quase 60 mil óbitos no Brasil, sendo grande parte dos registros no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mortes que refletem a estrutura distributiva da renda do país, já que setenta, em cada cem delas, reportam a trabalhadores que ganham até três salários mínimos. Este é um indicador de que a principal causa de risco é ser pobre, ainda que todos estejam sob ameaça. Risco é ter que se submeter à ganância capitalista. Tristes trópicos! Mortes oriundas do desprezo do governo para com a vida. Governo que pratica a necropolítica em um regime que se assemelha à tanatocracia.
E mais, um antigo som persiste matando, sobretudo, os jovens negros da periferia: o estampido das balas da polícia militar. Balas “perdidas” e balas direcionadas que só encontram os pobres. A cada seis horas uma pessoa é morta pela PM em Sampa, mas não é no cruzamento da Ipiranga com a São João. A vida não pode esperar: é hora de todos brasileiros se unirem pelo fim das mortes anunciadas. Pelo fim dos assassinatos das PMs e das mortes provocadas pela política deste governo pandemônico. Um SALVE À VIDA!