Mascarados
Tenho um amigo que, além da máscara, usa óculos escuros. Diz que se sente mais seguro.
Esta semana, esse amigo, que se chama Adalberto, me contou que, mesmo usando máscara e óculos de sol, foi reconhecido no supermercado pela ex-mulher.
Viveram seis anos juntos, separaram-se há três, não se viam há dois, desde o começo da pandemia.
Ele ficou impressionado com o fato de a ex-mulher ter percebido que era ele, quando se encontraram ao acaso no balcão das verduras.
Ele viu, pela contração dos olhos dela, que a ex-mulher sorriu e fez um movimento de oi com a cabeça.
A pandemia criou essas situações estranhas. Olha-se para quem está ao lado e a dúvida se manifesta: será o fulano? Eu cumprimento todos os mascarados que suspeito que conheço.
Há um mês, olhei um sujeito de cabeça branca, com óculos de tartaruga e camiseta do Grêmio, e pensei: é o Pimentel.
Já era noite, ele estava sentado tomando cafezinho no Paseo. Meu amigo que eu não via há uns quatro anos, porque foi morar no Recife e há poucos meses estava de volta a Porto Alegre.
Cumprimentei com o soquinho, quase o abracei e disse: aparece lá em casa, porque já tomei a terceira dose. Vamos comer uma costela uruguaia no sábado.
Ele disse apenas que sim, que legal, que também estava tri-imunizado, e apareceu no sábado com a mulher.
Sentou-se e eu vi que algo estava errado, porque aquele ali era maior do que o Pimentel.
Não era o Pimentel. Era outro sujeito que eu conhecia. Ele sabia onde eu morava, mas eu não o convidaria para comer uma costela.
Me segurei, minha mulher franziu a testa e me olhou preocupada quando percebeu que não era o Pimentel, mas fomos em frente.
Até que o cara começou a elogiar Bolsonaro, com a ajuda da mulher dele.
Meu primeiro churrasco na pandemia, e eu estava com um bolsonarista comendo costela uruguaia e bebendo minha cerveja.
Eu dizia que não concordava, ele rebatia que sabia, mas que conhecia minha tolerância com a liberdade de opinião e que por isso mesmo havia aparecido.
Quando o desespero bateu, tocaram na campanhia. Era o meu amigo, aquele que havia encontrado a ex-mulher no supermercado, o Adalberto.
Ele e uma mulher que, pensei, era sua ex-mulher. Sentaram-se e eu vi que havia de novo algo errado. Era muito parecida, cabelos curtos, sobrancelhas naturais, mas não era a ex-mulher dele.
Achei que estivesse delirando. Foi quando ele esclareceu que aquela era a mulher que ele havia confundido com a ex-mulher no supermercado.
Passaram a conversar depois, em outras compras, quando ele percebeu que não era sua ex-mulher. E acabaram namorando. Tinham aparecido para que a gente a conhecesse.
A chegada do casal me distensionou um pouco e conteve a conversa do outro casal bolsonarista.
Já no meio da tarde, tocou o telefone. Era o Pimentel, que ligou para contar uma novidade: estava namorando a ex-mulher do Adalberto.
E contou então que se viram na fila da vacina e ali tudo começou e que ele havia percebido que a ex-mulher do Adalberto era mais bonita de máscara e que ela só andava de máscara, mesmo estando em casa e que… (Este artigo foi publicado originalmente no Grifo nº 14, em nov/2021)
Clique aqui para ler outros artigos do autor.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial.
Ilustração: Mihai Cauli
Aproveite e clique aqui para escutar “Noite dos Mascarados”, de Chico Buarque.