A Propósito dos funerais de Estado
cavalos
Numa cena de Um Toque de Pecado de Jia Zhang-ke (2013), um homem está parado com sua carroça e seu cavalo rodeados por pequenas montanhas de carvão. O pano de fundo é a silhueta enegrecida da usina de carvão de Wujinshan. Extenuado, o animal se recusa a prosseguir. Não pode mais. Não consegue porque o que lhe restava de energia se foi. Possesso, tomado de fúria, o dono espanca o animal preso no veículo. É incapaz de conter a raiva que o cega ao mesmo tempo que o estimula. Vencido pela exaustão e pelos golpes do chicote, o corpo do bicho se retorce, dobra uma perna, logo outra, mas o selvagem espancamento não se interrompe. A fúria do proprietário apenas cresce e ele, revigorado pelo ódio, insiste na violência dos golpes até que o cavalo por fim desaba, batido sobre o solo pedregoso, negro e gelado da estrada.
mulas
Na data do enterro, 9 de abril de 1968, quatro dias após o assassinato, o caixão com o cadáver de Martin Luther King foi transportado pelas ruas de Atlanta numa carroça puxada por duas mulas.
Não havia transcorrido cinco anos desde quando, no final de novembro de 1963, aconteceu o funeral de estado (assim se referem ao evento) do presidente morto em Dallas três dias antes. Assim como o de King, o corpo de Kennedy foi levado à tumba por um veículo de tração animal, uma sólida carroça puxada por seis robustos cavalos brancos conduzidos por três garbosos membros das Forças Armadas americanas.
As óbvias diferenças entre as duas solenidades certamente se devem ao fato de que um era o príncipe, filho pródigo da nação, o eleito, e o outro só a voz dos que não tinham voz nem aparência, dos extraídos da história, roubados do mapa, trazidos de longe como mercadoria e desde então tratados como menos que gente, os destinados aos bancos de trás do transporte público e aos bebedouros marcados.
funeral de estado (um)
Nas fotografias que retratam as cerimônias fúnebres de Josef Stalin não havia cavalos nem mulas, não que eu me lembre. Mas claro que lá deveriam estar os indefectíveis equinos. Sem exceção, cada homem, mulher e criança da federação com onze fusos horários havia sido convocado e o país parou, mumificado por largos, congelados instantes. A uma determinada hora, num uníssono constrangedor, a ordem foi cumprida com rigor militar e pompa religiosa.
O silêncio sepulcral indicava a escala da rendição à divindade, à eternização do guia dos povos que ironicamente se despedia do mundo. ¹
Ao largo de cada um dos fusos horários e de norte a sul do país, apenas à narração mecânica dos alto falantes é permitido cortar o silencio para anunciar a despedida do “maior gênio da história da humanidade”. Não há lugar para espaços vazios, a voz do poder deve ocupar cada um dos interstícios.
state funeral (e outro)
Suponho que todos os funerais que envolvam chefes de Estado tenham essa denominação augusta. E essa pompa opressiva e essa imponência constrangedora, algo infantil (ou não são as crianças quem mais se sentem encantadas pelo super-homem, o superfuneral, o superguia dos povos, o superisso ou o superaquilo?). Mas a solenidade de uns ultrapassa a de outros. E nenhum, em nenhuma outra época, terá sequer a chance de se aproximar do caráter superlativo, da grandiosidade patética e incômoda daquele funeral. Ele deveria enfatizar o mito que de uma vez para sempre substituía a figura sagrada do tirano. Sua quase que insuportável eloquência tinha a óbvia intenção de torná-lo único, a maior de todas as cerimônias fúnebres e por toda a eternidade. Pois do que de fato se tratava era do sepultamento de (um) Deus.
flores
A orquestração funciona com precisão milimétrica. Como se na realidade se tratasse da montagem cronometrada de um filme. Que mecanismos eram aqueles que tornaram possível a operação? Milhares e milhares de coroas de flores, enormes, maiores que aqueles que as carregavam, pesadas, difíceis de serem transportadas, levadas por três, quatro, cinco pessoas para o interior da capela ardente, e sem que ninguém perceba, retiradas e substituídas incessantemente, e enfileiradas ao longo das paredes do lado de fora, por quilômetros de ruas. Montanhas de flores no final do inverno russo (a primeira semana de março de 1953), o milagre da multiplicação… no reino da produtividade soviética.
(As flores chegavam por todas as vias de onde quer que existissem. O pianista Sviatoslav Richter, que voava para Moscou para se apresentar no funeral, era “o único passageiro em um avião cheio de coroas de flores”. Foi durante o voo que Richter tomou conhecimento do falecimento de Serguéi Prokófiev, morto “cerca de 50 minutos antes do último alento de Stalin” – apesar da fama do compositor e da importância da sua música na cultura da era soviética, a relevância do funeral do grande chefe fez com que o Pravda só se desse ao trabalho de noticiar a morte do artista cinco dias depois, em 10 de março.) ²
equinos
Eu não me lembrava dos equinos, mas me lembro perfeitamente bem das montanhas de flores. Não me lembrava dos equinos porque na maior parte do trajeto até o mausoléu na Praça Vermelha eles estão sempre encobertos pela massa compacta das coroas de flores transportadas pelos eleitos do apparatchik. Mas os equinos também estavam lá, e eram cavalos negros, ao contrário dos do funeral de Kennedy (que eram brancos), e não mulas, como os de Luther King.
Nas proximidades do mausoléu, inadvertidamente talvez, os câmeras capturam os privilégios da nomenclatura, a impiedosa desigualdade do regime nos trajes suntuosos das esposas dos mais bem posicionados membros da burocracia – a vestimenta da aristocracia é ostensivamente distinta da roupa dos trabalhadores enfileirados para o ato final da adoração.
funeral de estado (três)
Nos funerais de Mao Zedong não havia tal abundância de flores. Na realidade, eram bem poucas, postadas muito discretamente ao lado do caixão. E, à diferença dos funerais tanto de Stalin quanto de Kennedy, tampouco havia as majestosas parelhas de equinos, fossem brancas ou negras. Sabe-se lá por quê.
profanação
Em Nova Dehli, assim como no resto da Índia, suponho, em Alang ou Bhavnagar tanto quanto em Surate, em Orissa, Behar ou Uttar Paresh, eles não maltratam animais, não as vacas pelo menos. É proibido. São considerados seres sagrados.
crueldade
Desconheço qualquer tradição chinesa, do presente ou do passado, que proíba o maltrato de animais, equinos ou bovinos. A se considerar como verdade a cena do filme de Jia Zhang-ke descrita acima, são como os ocidentais e aparentemente não dão muita bola à crueldade contra os equinos. Não há nada na cena ou no filme de Zhang-ke sobre os bovinos.
(Relativamente aos humanos, ao menos pelo nível de esforço exigido dos operários da Fuyao Glass Industry do Sr. Cao Dewang, o que podemos imaginar é que o Estado criado pelo camarada Mao e herdado pelo camarada Deng Xiao-Ping, está perfeitamente de acordo com aquele nível de exploração do trabalho contra o qual se rebelaram os trabalhadores e as organizações fundadas por eles no século XIX. E com isso, você pode apostar, o Sr. Dewang se mostra muitíssimo satisfeito, do mesmo modo que sua eventual linhagem, assim como, imagino, os herdeiros do falecido camarada Xiao-Ping – ah!… não me perguntem como foram seus funerais.)
das diferenças entre os equinos
Equídeos são mamíferos pertencentes ao gênero Equus, assim como o ser humano é um mamífero pertencente ao gênero Homo, da espécie Homo Sapiens. Entre os equídeos estão os cavalos (Equus cavalus), os jumentos, asnos, burros e mulas, também a zebra. Mas dentre esses animais há uma peculiaridade interessante, digna de destaque: a mula, fêmea do burro (Equus asinus) é um animal híbrido e estéril. De modo que para que nasça uma mula ou um burro é necessário o cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento.
Quanto à genealogia das aberrações políticas, isso nos custaria muito mais tempo – e paciência.” (Trecho de A Noite Belga)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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