Ao falar de fungos e parasitas e suas funções mortíferas para com os seus hospedeiros, me veio um estranho paralelo entre eles e os necrofascistas como Pablo Marçal.

Cartografia do intolerável e a produção de uma ecologia nômade

Ao tratar a problemática da ecologia, acentuam-se os desequilíbrios ecológicos ambientais e, também, os desequilíbrios sociais e individuais. Isto porque não dissociamos a nossa subjetividade – enquanto modo de ser e estar no mundo – das deteriorações por que passa o planeta Terra. Neste sentido, concordo com Félix Guattari, quando fala da necessidade de uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos – o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana. Ele chama esta articulação de ecosofia e a desenvolveu em seu livro As Três Ecologias, que me inspirou a fazer este artigo.

No planeta Terra, temos um imenso crescimento demográfico: 8.2 bilhões de habitantes jogados, em grande parte, numa condição de marginalização, desemprego, guerras, angústias pessoais, desesperos sociais, deterioração ambiental. Apenas a elite capitalística usufrui amplamente das mutações tecno-científicas, da cultura, da pesquisa, do enriquecimento econômico, dos cuidados necessários à sua saúde física e mental.

A resposta à crise ecológica terá de se produzir em escala planetária, em que padrões políticos, sociais e culturais sejam revistos a partir de outras perspectivas na produção de bens materiais e imateriais. Esta crise passa por condições macroeconômicas e macropolíticas e, também, por condições moleculares de inteligência, sensibilidade e desejo. O mercado mundial coloca em relevância a produção de bens materiais. Na economia de mercado se aplicam os ideais liberais, que supõem uma mínima intervenção do Estado e a ampla predominância da iniciativa privada. O sistema econômico e político dominante no mundo – o Capitalismo Mundial Integrado – se sustenta na propriedade privada, no lucro, no trabalho assalariado e conta com máquinas policiais e militares como protetoras da manutenção de seu poder. Por outro lado, temos ainda as intervenções midiáticas e posições subjetivas cada vez mais individualistas, próprias à sociedade de consumo, comungando ideais de status social e ostentação do corpo, da moda, da música. A teologia da prosperidade, movimento doutrinário dos evangélicos carismáticos, também legitima tal ostentação. Prometem a seus seguidores crescimento financeiro, alívio dos sofrimentos e derrota do diabo.

Há outros dramas no mundo expressos em tragédias incomensuráveis: a fome se alastrando incontrolavelmente, as guerras se estendendo em várias regiões do planeta, as queimadas em dimensões amazônicas se dando de forma criminosa e acarretando prejuízos materiais e sociais, as migrações se colocando como fuga de condições de miserabilidade absoluta, de guerras intestinas ou de países sob ataque de impérios mais nutridos de armas mortíferas. Há ainda o aquecimento global, a elevação dos oceanos, mudanças climáticas, escassez de água, dentre muitos outros males. Na atualidade, a ação do homem é a principal causa de degradação da natureza. O desmatamento é uma das atividades de maior impacto ambiental: degrada o solo, destrói espécies vegetais e animais e causa enchentes em que rios se tornam assoreados e erosões invadem suas margens.

A tensão social se agudiza e as zonas de desespero se instalam com a ampliação do desemprego junto a jovens, idosos, trabalhadores que perdem o trabalho. Não se põe a seu alcance os novos meios técnico-científicos, que poderiam ajudar na resolução de tais condições de desigualdade. Ao lado do recrudescimento de condições tão nefastas, surgem as lutas contra uma desigual condição feminina, o grave problema do racismo, o ataque às populações originárias, a marginalização dos homossexuais e transgêneros.

A ideia ecosófica busca recompor práticas humanas em todos estes domínios. Estou me reportando a escalas individuais e coletivas, tanto de atitudes e gestos na vida cotidiana, quanto na recriação da democracia. Tais questões passam pela produção de uma subjetividade singular que iria contra a massificação midiática do modo de pensar, de agir e de sentir. No plano mundial, busca-se o apoio e participação pela unificação da luta contra a fome no planeta Terra, contra a destruição das nossas florestas e contra a criação desenfreada de indústrias nucleares. Busca-se também criar uma política de pacificação dos países em guerra. O genocídio perpetrado por Israel ao povo palestino causa horror ao mundo inteiro, porém há um acobertamento evidente de sua sanha assassina e colonialista pelas nações europeias ditas mais poderosas e, particularmente, pelo império norte-americano, que apoia, financia e guarnece de armas os necrofascistas israelenses.

O paradigma ético se destaca junto àqueles que passam a intervir em instâncias individuais e coletivas através da educação, saúde, cultura, esporte, arte. Não há como se esconder atrás de uma neutralidade que não articule os paradigmas ético, estético e político. Cada instituição educacional, cultural, médica, clínica, esportiva, artística poderá recompor suas práticas sociais e individuais a partir das três ecologias.

As relações da humanidade para com a sociedade, o outro e a natureza não têm melhorado. Por vezes se deteriora. A degradação é um estado de fato. Precisamos pensar as interações políticas que produzem ecossistemas e universos de referência individuais e sociais. As práticas ecológicas buscam compor outras configurações existenciais, face a desterritorializações mais suaves ou mais brutais. As mais suaves podem fazer evoluir processos singulares de modo construtivo. As mais brutais podem implodir processos ambientais, sociais ou mentais levando-os a   situações caóticas, quais sejam, as queimadas da floresta amazônica, a angústia por não se sentir inserido socialmente ou as psicopatologias sociais que disseminam condições de violência, discriminação e racismo como alternativa de modos de viver criando truculentos territórios existenciais.

Por falar em truculência, surge Pablo Marçal, que reedita a banalidade do mal

Por falar em truculência, o exemplo gritante é o surgimento de Pablo Marçal como um dos candidatos a prefeito em São Paulo nessas eleições. A figura asquerosa de Pablo Marçal causa profundo mal-estar: ele é um tipinho infame que tem gosto por tudo que corrói e destrói. Vulgar e perverso, Marçal já foi o responsável por selecionar possíveis vítimas em esquema de roubo a contas bancárias. O processo transitou em julgado e, por isso, apesar de condenado a quatro anos não foi preso. Desrespeita regras do processo eleitoral, acusa sem nenhuma comprovação, o candidato Boulos de ser usuário de cocaína, mentindo descaradamente. Em pesquisa jornalística, se esclareceu quais as reais intenções de Marçal: usar o atestado de prisão por drogas de um homônimo do Boulos no último debate entre os candidatos, a se realizar na Globo a dois dias da eleição. Esta desinformação mentirosa serviria para enganar o eleitor e lhe seria favorável. Diz não se incomodar com as multas a pagar pelas fake news que divulga na internet. Para ele são multas muito pequenas. De onde viria tanto dinheiro? É a pergunta que não quer calar. Rastros de sua ligação com o narcotráfico parecem já vir à tona. Ele não quer dialogar com seus adversários. Quer destruí-los!

Marçal corporifica a irrupção de uma extrema direita que reedita a banalidade do mal, trabalhada por Hanna Arendt no decurso do julgamento de Eichmann. Este se isentava de ter cometido qualquer crime: apenas cumprira ordens. Ou seja, a banalidade do mal era a prática do mal como se fora algo comum, rotineira entre os oficiais nazistas que, supostamente, apenas cumpriam as determinações governamentais. Nada a ver com o bem comum e com os interesses da coletividade.

Na atualidade política brasileira, discursos de ódio invadem as redes sociais parasitando seguidores zumbis. Esta situação me remete a uma conversa que tive com o filósofo e biólogo Paulo Carvalho, em que começamos a falar de fungos e parasitas e suas funções mortíferas para com os seus hospedeiros. Foi então que me veio um estranho paralelo entre parasitas e necrofascistas. Parece que faz sentido. Senão, vejamos.

Na natureza encontramos parasitas, seres que invadem outros animais e dominam os seus corpos levando-os à morte. Temos, por exemplo, os parasitas ophiocordyceps unilateralis que infectam as formigas e as dominam, mudando o seu comportamento. Dominadas, elas são guiadas para lugares mais propícios ao desenvolvimento dos parasitas acoplados a elas. Após um período de uma a duas semanas o fungo parasitário ataca o sistema nervoso central das formigas e essas passam a se movimentar aleatoriamente: trêmulas e sem rumo. Daí serem chamadas de formigas zumbis. A expansão da extrema direita em vários países do mundo tem como hospedeiros largas parcelas das populações locais. Vide o surgimento do bolsonarismo, em que hordas entorpecidas, o chamado “gado”, seguiam fielmente as ordens do “mito”, demolidor destrutivo da democracia em nosso país. Nenhum questionamento lhe era feito por seus seguidores zumbis, que ainda hoje vagam apoiando o que for proposto pelo energúmeno e sua familícia. Agora surge Pablo Marçal, esse manipulador patológico, mentiroso compulsivo, espertalhão maquiavélico visando criar uma outra horda de seguidores zumbis, que não o vejam como ele realmente é: o protótipo do alpinista político de ultradireita despido de toda ética. A ética não encontra morada em sua verborragia, nem em seu modo de ser.

Parece-nos que o desenvolvimento técnico-científico guarda pouca relação com o crescimento de progressos sociais e culturais, assim como os reguladores estatais institucionais vêm, o mais das vezes, traçar políticas públicas avessas às necessidades do meio ambiente e das populações. Os imigrantes, mulheres, jovens, negros, população indígena, idosos são segmentos sociais que sofrem brutal segregação.

A ecologia social e a ecologia mental se preocupam hoje com o porquê há uma introjeção, por parte dos mais marginalizados, das promessas demagógicas dos detentores do poder na sociedade. Há um atravessamento político-social inconsciente na vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de vizinhança e social. O neoliberalismo tem necessidade de manipular dados pessoais de cada um para melhor atrelá-los a agregados de raça, nação, corporativismo profissional. A mídia cumpre então o seu papel de anestesiar a todos. Há, na atualidade, uma inescrupulosa domesticação dos territórios existenciais.

A ecosofia mental busca reinventar a relação com o corpo, com as heranças familiares, com a vida e a morte, opondo-se à manipulação publicitária, à uniformização midiática, ao conformismo com as imposições massificadoras da moda, da música, da comida, do fanatismo religioso. A ecosofia social nos leva a repensar e reinventar modos de ser no seio da família, do trabalho, das escolas. O ser em grupo é colocado em questão e há que se respeitar as diferentes culturas em sua relação com a vida, na constituição de seus diferentes modos de ser. Penso em uma ecologia nômade que crie alternativas sustentáveis em todo o planeta.

Busca-se uma eficácia existencial através de novos modos de ser no corpo, meio ambiente, etnias, nação e pelos direitos inegociáveis da humanidade: alimentação, habitação, trabalho, saúde, educação, proteção à vida e integridade para todos. Procura-se a constituição de uma proto-subjetividade que recoloque a qualidade do trabalho e das atividades humanas em função de outros objetivos que não rendimento e lucros, possibilitando a criação de uma nova sensibilidade e de uma outra sociabilidade.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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