Gasto público, inflação e taxa Selic: uma sequência equivocada e nada inocente

O noticiário dito especializado e parte expressiva dos profissionais da área de economia costumam verbalizar a sequenciação presente no trinômio acima como se ela fosse autoexplicativa. Mais detidamente: que o aumento dos gastos públicos elevaria os preços e, por esta causa, não haveria alternativa senão subir a Selic. De outra forma: a alta da aludida taxa básica de juros definida pelo Banco Central seria a política monetária por excelência ou mesmo exclusiva para debelar a inflação. 

Esse raciocínio parte de um suposto implícito: a alta dos preços resultaria da pressão de demanda, dado o aumento dos referidos gastos (no caso, públicos), sobre uma estrutura econômica de oferta inelástica. Dizendo de maneira diversa: os preços seriam necessariamente aumentados na medida em que essa economia operaria em pleno emprego. O leilão pelos bens e serviços disponíveis segundo essa ‘modelagem’, por conseguinte, seria inexorável. 

Acontece que a sequenciação em tela não é nem autoexplicativa nem inexorável, e sim errada mesmo. Ela está longe, enfim, de ser uma verdade universal. Explicando: no mundo em que vivemos, rara e ocasionalmente a economia opera em situação de pleno emprego; como, aliás, apontou o mais importante economista do século XX, o inglês John Maynard Keynes. Nesses termos, o raciocínio supramencionado ao não se sustentar em termos históricos, tampouco pode fazê-lo teoricamente. 

Não fora suficiente, ela também não se sustenta na medida em que se considera que os preços não são definidos apenas pela interação da oferta e demanda, posto que no assinalado mundo os agentes econômicos não possuem o mesmo poder de mercado. Assim sendo, erige-se outra ficção: essa suposição ignora o poder de mercado das empresas oligopolistas e das que ofertam serviços com preços administrados que tanto caracterizam o capitalismo, notadamente a partir do último quartel do século XIX (dada a chamada Segunda Revolução Industrial, Científica e Tecnológica). 

De outro modo: a praxis em exame alheia as empresas que ditam preço ao mercado (ao invés de nele o tomarem). E mais: dadas as margens de lucro inelásticas para baixo com que operam (regra do “mark up”, como o define o economista M. Kalecki), quando da redução do nível geral da atividade econômica, com vendas menores e elevação de seus custos médios, elas tendem a subir os preços de sorte a manter suas anteriores massas de lucro. Em suma: o raciocínio e propositura em exame ignora essa determinação da inflação (tão imanente ao capitalismo, como anotamos, especialmente a partir da etapa inaugurada com a Segunda Revolução Industrial e suas grandes empresas, capital financeiro, mercado de capitais etc.). 

Traquinagem metodológica e ficção combinam-se aqui à perfeição. Nesses termos, a tese de que o aumento dos gastos públicos leva inexoravelmente à inflação mostra-se teoricamente insubsistente, bem como a terapia monocausal que dela emana, a elevação da taxa Selic. 

Também merece sucinto comentário a subjacente malignidade atribuída ao gasto público; como segue: tal narrativa perde de vista que esse gasto, por exemplo, em saúde pública, tende a reduzir as despesas futuras com a previdência social; que as despesas em educação, além da maior capacitação da força de trabalho, tendem a gerar economias futuras com programas de transferência de renda, etc. 

Logo, pode-se dizer que a narrativa abarcada no trinômio em juízo ‘sofre de um outro e perverso mal’: o curto prazismo que, pelo exposto, conspira contra a construção de uma sociedade menos iníqua e mesmo economicamente mais dinâmica e eficiente. 

Em movimento analítico diverso, resta uma pergunta: quem ganha e quem perde com a sequenciação que intitula a presente reflexão? 

Examinando o ‘quem perde’ é trivial que a alta da Selic e seu rebatimento altista sobre as taxas definidas pelo setor privado, ao contrair a demanda agregada, alcança as micro, pequenas e médias empresas que, além de venderem menos, no mais das vezes são forçadas a entrar em guerra de preços (que apenas mitigam a pressão inflacionária) e a experimentar queda de suas lucratividades. Dada ainda a importante geração de emprego verificada nessas empresas, a massa salarial tende a ser comprimida e aumentada a taxa de desemprego (e consequentemente contraídas as despesas com bens de consumo – dentre outras). Acresçam-se aqui as próprias contas públicas, dada a igual tendência de queda da arrecadação tributária derivada do menor nível geral da atividade econômica. 

Ainda sob a perspectiva dos que perdem também merecem menção algumas decisões econômicas negativamente atingidas, todas elas, vale a ênfase, determinantes da renda nacional (ou PIB): as de consumo, as de produção e as de investimento propriamente ditos. Afora o impacto gravoso sobre indicadores econômicos, sublinhe-se que muitas pessoas são vitimizadas pela combinação perversa da alta dos juros com a desaceleração econômica (uma das suas sequelas evidentemente é o aumento do desemprego). Sem falar que a alta dos juros eleva os custos das empresas que operam com capitais de terceiros que, quando podem, os embutem no apreçamento de seus bens e serviços, conspirando assim, contraditoriamente, para a resiliência da inflação. 

Por outro lado, ‘o dos que ganham’, salta aos olhos os interesses dos agentes financeiros, posto que a elevação da Selic e das taxas privadas implicam, em regra, numa apropriação ‘a maior’ dos seus rendimentos quer ao nível do orçamento público, dada a chamada dívida mobiliária, quer da renda nacional (respectivamente). Vale aqui um adendo: essa ‘mordida’ se dá sobre uma economia ‘encolhida’, como materializado na queda da renda, do emprego, da arrecadação tributária que, não fora bastante, comprime os gastos de custeio e de capital dos entes federativos – jogando, portanto, mais lenha no moinho da recessão econômica e do ‘apequenamento’ das políticas públicas. 

Resumo dessa ópera bufa, teoricamente equivocada e socialmente perversa:

  • a) a ideia de que o aumento do gasto público leva diretamente à inflação nem de longe é universalmente aceita. E.g., o aumento do gasto público ou da demanda agregada, em geral, leva apenas a maior inflação quando a capacidade produtiva da economia se encontra em seu limite, o que, como dissemos, parafraseando Keynes, é fenômeno raro e ocasional no que se costuma denominar de economia de mercado (leia-se: capitalismo); e, ademais, pensando no tempo, o gasto público não é necessariamente eivado de problemas como a narrativa ora examinada sugere ou mesmo proclama (vide apontamentos anteriores);
  • b) a ideia de que a inflação se explica apenas pela interação da oferta e demanda é assaz simplista, tanto mais quando se tem em conta que o mercado capitalista se encontra a léguas de distância de uma feira livre carioca na hora da xepa e sob um sol de 40o. E.g., tão somente ali os preços limpam o mercado e igualam os desejos de ofertantes e demandantes. Enfim: ignorar os oligopólios, monopólios, etc. e suas capacidades de ditarem preços ao mercado beira à desfaçatez; e,
  • c) a ideia de combater a inflação pela ‘simples’ elevação da taxa de juros, dado o que se assinalou neste parágrafo, idem, uma vez que no limite somente um setor econômico ganha – o financeiro. 

Situando esse debate na atual quadra nacional brasileira, como enunciou recentemente o senhor presidente Lula da Silva, nada justifica a histeria de parte da imprensa e da academia nacional com o aumento dos gastos públicos – pelas razões já alinhadas. Aliás, note-se que os que criticam a supressão do Teto de Gastos, em nome do suposto alcance de ‘finanças públicas saudáveis’, são os mesmos que apoiaram a reforma trabalhista (de Temer/Meirelles) e a previdenciária (de Bolsonaro/Guedes), além da institucionalidade do Banco Central Independente que, nesse último caso, ilustrando, é o responsável pela arbitragem de uma Selic de 13,75% (a atual) contra um IPCA acumulado em 2022 de 5,79% – ou seja, um “spread” de quase 8%. A turma da bufunfa, na feliz expressão do economista Paulo N. Batista, não descansa (e está sempre perfilada do mesmo lado)! 

Concluindo: passados anos das referidas reformas e Independência, curiosamente seus defensores não mais voltaram ao tema de modo a discutir o porquê de elas serem retumbantes insucessos diante das promessas antes enunciadas. Espera-se que o façam com o trinômio supramencionado? Não; sobretudo porque a transferência de renda da sociedade e/ou do Estado continuará firme, forte e expressiva enquanto essas reformas e Independência não forem revogadas a bem da ampla maioria da população brasileira. 

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

Clique aqui para ler artigos do autor.