O vídeo da reunião do alto comando golpista liberado ao público pelo STF mostra o estágio avançado da organização do golpe à democracia e sugere que a trama contava com um núcleo adicional aos seis já identificados e investigados pela Polícia Federal: um núcleo econômico, encarregado de drenar os recursos do orçamento público para assegurar a reeleição de Bolsonaro.

É o que podemos depreender da fala de Bolsonaro durante a reunião sobre a votação pela Câmara da “PEC das Bondades” e da vantagem eleitoral esperada “ela é necessária. Apesar de não ter sido feita para a eleição, não tem como não ganharmos a simpatia da população”. Afirmação que evidencia a sua relevância para a conspiração golpista e explica a presença de Paulo Guedes no conluio. É bom lembrar que essa PEC expandiu alguns programas sociais e instituiu novos auxílios emergenciais, utilizando mais de R$ 41 bilhões de recursos públicos para ações com validade apenas no período entre 1° de agosto e dezembro de 2022. Ou seja, eram previstas para começarem um pouco antes das eleições e terminarem logo depois delas, sem haver qualquer previsão orçamentária que viabilizasse a continuidade desses benefícios no próximo governo.

O reconhecimento de que essa PEC foi concebida como uma ação meramente eleitoreira e não como uma política de proteção social, é algo que o próprio Bolsonaro reconhece ao afirmar na reunião que “não tem como. Depois desta PEC da Bondade – a gente não está pensando nisso, né, mas – ter 70% dos votos. Mas vamos ter 49% dos votos”, fazendo uma referência direta ao objetivo de utilizar os recursos públicos para incidir na reversão da preferência da maioria à Lula, conforme indicavam as pesquisas eleitorais naquele momento.

Paulo Guedes ficou calado na reunião que discutia detalhes da preparação do golpe e tratava como fundamental para o seu sucesso uma ação na qual ele e a sua equipe haviam atuado decisivamente para viabilizar. O mais importante ministro do governo e representante dos interesses de grandes grupos financeiros, não titubeou e manteve seu ruidoso silêncio cúmplice, mesmo quando, em alto e bom som, Bolsonaro intimou todos a se posicionar: “Alguém quer falar? É obrigação falar se está errado”. Ele estava seguro de que a sua contribuição era reconhecida por todos e não necessitava de qualquer comentário adicional.

Para que não reste nenhuma dúvida da tramoia, quando essa Emenda Constitucional começou a tramitar, Paulo Guedes e a sua equipe chamaram a proposta de “PEC Kamikaze”. Naquele momento, o texto previa que as medidas deveriam vigorar por dois anos, e não apenas até o fim de 2022, o que poderia aproximar a proposta de uma verdadeira política de proteção social.

Ao longo das discussões comandadas pelo ministro da fazenda e sua equipe com os parlamentares bolsonaristas, acertaram que a proposta seria limitada a apenas cinco parcelas, sem previsão para a sua continuidade. Feito este acordo, a proposta deixou de ser considerada “Kamikaze” e foi transformada em “PEC das Bondades”, um dos pilares da estratégia de continuidade de Bolsonaro no poder.

Todo cidadão investido de cargo público está obrigado a cumprir com responsabilidade e honradez as suas obrigações funcionais e constitucionais, o que torna crime o silêncio diante de uma violação flagrante da legalidade. O envolvimento de Paulo Guedes, no entanto, vai muito além do silêncio cúmplice, pois a sua conduta ao longo do governo, especialmente no ano eleitoral, sustenta a hipótese de que ele liderava um dos núcleos fundamentais para o sucesso da intentona golpista, o núcleo econômico, e fez tudo aquilo que estava ao seu alcance para que ela fosse bem sucedida.

Nem Paulo Guedes e também nenhum dos demais presentes naquela reunião tiveram a honradez exigida de servidores públicos colocados diante de conspirações e atos ilegais, como foi a postura emblemática do oficial da FAB, Sérgio Macaco, que integrava o esquadrão paraquedista de resgate Para-Sar e se recusou a cumprir, em 1968, ordens do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier para dinamitar uma represa e explodir o gasômetro do Rio de Janeiro na hora do rush, o que poderia assassinar milhares de pessoas. O plano terrorista previa atribuir a culpa aos comunistas e legitimar um recrudescimento à repressão contra os opositores da ditadura militar. Ao ser perguntado pelo seu superior, Burnier, se concordava com o plano, Sérgio Macaco respondeu de forma altiva e respeitando as suas obrigações funcionais e constitucionais:

– Não. Não concordo. E enquanto eu estiver vivo isso não acontecerá. (…). Não me calo e darei conhecimento de tais fatos ao ministro. – Escolheu honrar suas obrigações, mesmo que essa postura tenha lhe custado a perda da patente de oficial e até a sua morte, em 1994, não tenha conseguido restabelecer seus direitos, algo que só ocorreu em 1997.

Diante de situação semelhante, 55 anos depois, os presentes na referida reunião permaneceram calados e concordaram em participar ativamente, ou na condição de cúmplices, de uma trama golpista contra a democracia brasileira e escolheram trair suas responsabilidades constitucionais e o compromisso de defender a democracia, através da qual lhes foi conferido o direito de acesso ao poder de Estado. Crimes contra os quais a democracia não pode deixar de se defender.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “O ovo da serpente”, de Luiz Marques.