Como dizia o finado e folclórico presidente do Corinthians, Vicente Matheus, “o que é difícil, não é fácil”. Aqui eu demonstro, a se tomar pelos artigos publicados e pelos dados oficiais, que o isolamento social adotado em grandes capitais terá que ser substituído por um modelo mais agressivo e de curto prazo, uma vez que, embora tenha salvo já dezenas de milhares de vidas, as medidas adotadas até agora ainda não tiveram o sucesso desejado e não serão sustentáveis a médio/longo prazo. Caso não se tomem medidas radicais contra a disseminação do vírus, em poucas semanas passaremos a contar nossas vítimas em centenas de milhares de casos.

É importante, antes de tudo, dizer que a evolução da pandemia no Brasil talvez esteja entre as mais previsíveis entre todos os países. Nada, mesmo o desastroso comportamento de nosso presidente, tem sido surpreendente para quem conhece o vírus e o Brasil. Mesmo o sucesso apenas parcial das medidas de isolamento social era esperado, no caso, por dois motivos: um ligado à disciplina de nosso povo e nossa classe política e outro ligado à estratégia específica que foi adotada no país.

O primeiro motivo era mais óbvio e importante. O isolamento social jamais foi apropriadamente implementado. Bem à moda brasileira, onde nada é feito de modo impecável, com uma postura tipicamente negacionista, as medidas protetivas propostas pelas autoridades sanitárias foram ignoradas por uma parcela significativa da população. Em São Paulo, onde houve um empenho sério no combate à pandemia, chegavam a ser penosas as súplicas diárias do governador e do prefeito para que a população permanecesse em casa. “Fiquem em casa! Precisamos de 70% de isolamento”. Quando conseguiam um isolamento de 60% era uma celebração só, para que no dia seguinte, o isolamento caísse novamente para 50 ou 48%.

A impressão que se tem é que, por aqui, custamos a entender que nossos atos têm consequências e que não basta fingir que a pandemia não existe para que ela desapareça. Isso, simplesmente, não funciona. Guardando as devidas proporções, é algo como pular de um prédio, acreditando que a lei da gravidade será revogada no meio do caminho. Em 11 de junho de 2020, data em que comecei a escrever este texto, São Paulo reabria seu comércio registrando os maiores índices de mortes desde o início da pandemia. O Rio de Janeiro seguia afoito pelo mesmo caminho em um estado ainda pior, por ter 96% de sua capacidade hospitalar tomada e sem que os hospitais de campanha estivessem em condições de funcionamento. O óbvio não deixará de acontecer, assim como a lei da gravidade não deixará de funcionar da noite para o dia.

A segunda razão pela qual esse isolamento, mesmo considerando que tenha salvado dezenas de milhares de vidas, não funcionou plenamente, é que a estratégia de isolamento moderado não é a melhor para países pobres, ou mesmo ricos que se comportam como pobres, ou seja, em locais onde o governo não dê um vigoroso suporte financeiro à população durante o seu isolamento.

Hoje, está claro que a estratégia ideal para países pobres atravessarem a tempestade seria um isolamento radical, o famoso “lockdown”, por cerca de três semanas, como o realizado na Índia (que tem uma tradição como celeiro de bons cientistas e matemáticos, diga-se de passagem), período durante o qual, claro, seria necessário fazer uma testagem massiva da população e promover uma turbinagem da infraestrutura hospitalar do país. Tal isolamento, mesmo que relâmpago, tenderia a levar os casos a quase zero, interrompendo radicalmente o ciclo do vírus e viabilizando, a partir de então, o controle de eventuais bolsões de infecção que aparecessem posteriormente à abertura de serviços não essenciais.(1)

Na maioria das capitais brasileiras, assim como no Rio de Janeiro e em São Paulo, foi adotada uma estratégia mais moderada com o isolamento apenas parcial da população. Nesses locais, seguramente, essa modalidade de isolamento horizontal achatou a curva de crescimento, minimizou o número de mortes e evitou o colapso do sistema hospitalar.

Acontece que essa estratégia, quando não abraçada disciplinadamente pela população, acaba submetendo a sociedade a um sacrifício que dura muitos meses. O achatamento da curva em patamares elevados de número de casos, em médio prazo, resulta em uma forte depressão econômica e em uma consequente necessidade do trabalhador romper o seu isolamento pessoal e ir para a rua trabalhar. Além disso, o sistema hospitalar e os profissionais de saúde são submetidos a muitos meses de estresse, o que acaba resultando em aumento no número de óbitos, inclusive de profissionais da saúde.

Assim, essa impressão que temos de que os governos de estados e prefeituras estão se precipitando ao abrir seu comércio e soltar a boiada está totalmente correta. Nenhum país do mundo ou cidade encerrou seu isolamento enquanto os números de mortes e novos casos não estavam decrescentes. Mesmo o negacionista que está à frente da Casa Branca já entendeu isso e o deixou claro ao criticar os governadores americanos que não seguiram rigorosamente os protocolos para a reabertura da economia. O resultado da pressa em reabrir o comércio já está sendo visto no formato de uma segunda onda de disseminação da doença que se abate sobre aquele país.

No Brasil, a adoção de rigorosos “lockdowns” meses atrás teria feito com que nós tivéssemos poupado muitas vidas e nossa economia, mas me parece que esse cenário somente seria possível se o Brasil não fosse o Brasil. Nesse sentido, aqui reside a questão subjacente ao título do artigo. Tendo em vista que o pior da pandemia ainda está por vir e, caso queiramos evitar uma calamidade, nossa sociedade e classe política têm que ser muito melhores do que, de fato, são. Como fator de motivação para isso, talvez caiba deixar claro que, potencialmente, o número de mortes pode ainda ser multiplicado por 20. Isso mesmo! Ainda que tenhamos passado por 20% ou 30% do tempo da pandemia, em termos de contaminados, talvez ainda não tenhamos chegado a 5% da população, ou seja, cerca de 8 milhões de pessoas. Isso porque, enquanto o número oficial de infectados já passa de 1 milhão, a expectativa é de que tenhamos cerca de seis a 10 vezes mais de contaminados não testados. Esses números são respaldados pela literatura e pelas primeiras sondagens feitas no Brasil, como veremos abaixo.

À guisa de exemplo, uma pesquisa recente desenvolvida na Universidade Federal de Pelotas, que testou aleatoriamente a população brasileira, estimou que 500 mil pessoas já haviam sido contaminadas pelo vírus na cidade do Rio de Janeiro no início de junho (data da coleta dos dados). Considerando que, quando este texto foi escrito, cerca de 10 dias depois, pouco mais de 4 mil cariocas tinham falecido em decorrência da Covid-19 (cerca de metade do número de mortes no Estado), tem-se que 0,8% dos infectados estão morrendo na cidade. Esses números são altos, embora similares aos 0,6% de óbitos indicados por sondagens anteriores, como as conduzidas em Nova Iorque (2). Portanto, pode-se projetar para a cidade do Rio (população de 6,320 milhões), sendo conservador e acreditando que somente 60% dela seja contaminada, algo em torno de 30 mil mortos ao final da crise. Os números para o Estado seriam mais de duas vezes maiores.

Capitais como a referida acima foram as primeiras onde o vírus se disseminou, mas a invasão do interior está em curso. A mesma pesquisa da UFPEL mostra que a contaminação no Brasil é, em média, cerca de seis vezes maior do que os números oficiais, que hoje são de 900 mil contaminados, ou seja, devemos ter um número que se aproxima de 6 milhões de pessoas contaminadas, cerca de 3% da população. Em uma conta simples, se com 3% da população contaminada nós tivemos 40 mil mortes, quando chegarmos a 60% teremos 20 vezes mais, ou seja, 800 mil mortes.

A única chance que temos de fugir da catástrofe que se anuncia é implementando, de maneira perfeita, estratégias contundentes de isolamento social, ajuda financeira e testagens representativas. Listo a seguir dez medidas básicas.

  1. Entender que não dá para ficar sem um ministro da saúde que valorize ciência e que seja ele mesmo um médico apropriadamente empoderado;
  2. O referido ministro deve estabelecer uma relação de confiança com a população, especialistas e classe política;
  3. Uma trégua deve ser firmada e um plano suprapartidário de emergência traçado de maneira coordenada entre as esferas federal, estaduais e municipais;
  4. Uma testagem massiva deve ser conduzida de maneira inteligente, representativa e responsável, para que se tenha uma boa noção da distribuição de casos no Brasil
  5. A questão da subnotificação tem que ser minimizada sem medo de eventuais reverberações políticas;
  6. Por ocasião do plano suprapartidário, devem ser utilizados, de modo intransigente, critérios para o fechamento total (lockdown) ou diferentes graus de isolamento conforme local;
  7. Durante os períodos de isolamento vindouros (e virão, com ou sem planejamento), o governo deve dar apoio financeiro à população necessitada (a redução de 600 para 300 reais do auxílio emergencial não foi uma boa sinalização nesse sentido);
  8. Programas de ajuda a microempresas tem que funcionar apropriadamente, já que garantirão a retomada da economia após a crise;
  9. Deve ser elaborado plano específico para a proteção de comunidades indígenas;
  10. Escolas não podem voltar a funcionar este ano. Isso tem que ficar claro. O ano letivo deveria ser dado, oficialmente, como perdido para todos (acordos entre escolas e pais de alunos deveriam ser estimulados pelo governo de modo a evitar a falência de escolas).

Entretanto, resta uma situação. Tais medidas deveriam ter sido tomadas meses atrás, mas o foram apenas de modo trôpego. Agora, com a população já esgotada pelo persistente isolamento parcial e as autoridades destroçadas por conflitos, pressões de todos os lados, escândalos etc., o que poderia nos fazer crer que, de repente, passaríamos a acertar na maneira como encararíamos a crise? Estariam os brasileiros prontos para ser um pouco melhores?

Resposta fácil. Não.

(1) https://medium.com/@tomaspueyo/coronavirus-the-hammer-and-the-dance-be9337092b56

(2) (https://www.nytimes.com/2020/04/23/nyregion/coronavirus-antibodies-test-ny.html)