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No momento em que estamos sob o cerco de um identitarismo que chegou ao ponto de constranger um dos nossos mais importantes artistas, como é o caso de Chico Buarque, quero abordar nesse texto um evento que me chamou a atenção pelo seu aspecto inusitado e que de certa forma põe o identitarismo diante de uma contradição bastante desconfortável. Isso para dizer o mínimo.

Esse evento envolve a Marinha de Guerra dos EUA e um marinheiro que sofreu segregação quando servia na corporação. Penso não ser necessário estender-me aqui sobre o que é a Marinha dos EUA e o papel que ela desempenha no âmbito das políticas de projeção de poder de uma potência sabidamente imperialista.

Quanto ao marinheiro, trata-se de Harvey Milk, um homossexual que serviu como oficial instrutor de mergulho no navio de resgate submarino “Kittiwake”. Ele foi obrigado a esconder sua opção sexual e após cinco anos de serviço foi demitido e colocado na reserva.

No entanto, em 6 de novembro de 2021 ocorreu o lançamento de um novo navio de suprimentos da Marinha dos EUA, que foi batizado como USS Harvey Milk. O secretário da Marinha, Carlos del Toro, disse na cerimônia de batismo que “por muito tempo, os marinheiros foram forçados a ficar nas sombras ou, pior ainda, deixar nossa amada frota.”

O batismo do navio, na prática, significa que agora os marinheiros não são mais obrigados a disfarçar sua condição de homossexuais e isso é creditado a Harvey Milk e seu grande esforço para atingir esse objetivo quando se tornou o primeiro político abertamente ativista da causa LGBT. Ainda segundo o secretário da marinha, de enjeitado, Milk passou à condição dos “tipos de líderes navais de que precisamos no corpo de oficiais, nosso corpo de alistados e nossa força de trabalho civil”.

O prefeito de San Diego, Todd Gloria, não deixou por menos: “Harvey era um farol de esperança não apenas para as pessoas LGBT, mas para todos os americanos. Agora este navio se tornará um símbolo de esperança para o mundo inteiro”.

Aqui, obrigatoriamente, temos que fazer algumas perguntas incômodas. Que tipo de esperança levam os navios da Marinha de Guerra dos EUA? Desde quando fundear uma frota no litoral de um país que não pode defender-se da máquina de guerra dos EUA e bombardeá-lo até os alicerces pode ser considerado como um “símbolo de esperança para o mundo inteiro”?

Navios tripulados por homossexuais tornariam o intervencionismo menos brutal?

Que tenha havido uma mudança de comportamento por parte do Estabelecimento em relação à presença de homossexuais nas Forças Armadas isso é facilmente compreensível na medida em que o império cada vez mais precisa de carne de canhão para alimentar sua máquina de guerra. Ainda mais quando o momento não permite escolhas.

Mas como encarar a atitude de uma comunidade que pela sua opção sexual sempre tentou se apresentar como uma espécie de alternativa ao padrão moral estabelecido, uma vanguarda anticonservadora, irreverente e inconformada com os valores de uma sociedade que ela considera preconceituosa? Pois não é esse o discurso?

Como o fato de se tornar parte de uma força militar que tem um robusto histórico de genocídios se coaduna com esse “espírito libertário”? Aliás, essa pergunta também pode ser feita em relação às mulheres que frequentemente se queixam de violências e constrangimentos diversos por parte de seus colegas homens. Ora, a coisa mais inocente que se pode esperar de uma força militar que tem basicamente a função de operar como milícia do grande capital, como é o caso das Forças Armadas dos EUA, é que seus integrantes molestem suas colegas de farda.

Também é de se perguntar por que esses dois grupos, mulheres e homossexuais, agora fazem tanta questão de integrar essas hordas nas quais eles nunca foram bem recebidos? Isso não deveria ser encarado como “uma bênção”?

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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