Sandy nasceu Sandra. Mudou de nome bem depois, quando se olhou no espelho e percebeu-se estranha. Achou-se mais clara, mais loira, mais caucasian. “Oh, God!”, admirou-se. Naquele momento Sandra virou Sandy. Brasileira de Piracicaba, mas que se identifica como americana.
Percebeu-se exilada pela discrepância entre sua certidão de nascimento e seu passaporte. Teve, naquele mesmo instante, a certeza de que o sangue que corria nas suas veias não era latino, que sua vida estava toda errada, que jamais seria feliz nessa terra de gente tão infame.
Ramiro nasceu na fé. Sua avó levava sua mãe e sua mãe o levava para a igreja duas vezes por semana. Era mais certo que o nascer do sol. Criança, achava tudo aquilo chato. Em vão, tentava fugir.
Cresceu e ficou mais difícil para sua mãe o levar pelas orelhas. “Se não for, Deus vai te amaldiçoar!”, dizia sua mãe com mais raiva no olhar do que medo da ira divina cair sobre o filho. Mesmo assim, Ramiro não queria ir. Antes, porque era chato. Agora, porque dá medo. Tem medo das maldições do pastor. Medo da raiva da mãe. Medo da raiva de Deus.
Ramiro não é de raiva, é de boa. Não é da maldição e da vingança, é da paz e do amor. Ramiro não mais se sente bem em casa. Não sabe para onde ir. Nem sabe se tem como ir e viver em algum outro lugar. Só sabe o que sente e sabe que não quer sentir nem raiva, nem medo.
Myrthes e Rodolfo não desgrudam um do outro. Já são 20 anos assim. Casal feliz. Sem vícios. Gente do bem. Conservadores. Não gostam de ideias que destroem famílias. Não gostam de gays, nem de lésbicas, gente trans então! Não gostam de programas de televisão. Nem de novelas. Nem de música brasileira desses artistas comunistas. Tudo que destrói famílias tem a ver com comunismo.
São tão defensores da família que expulsaram a filha de casa por ser comunista. E o filho por ser viado. Com parentes deixaram de falar porque votaram em comunistas.
Os dois seguem unidos, mas sentem que há algo errado nisso tudo, só não sabem o que é. Procuram nos grupos de WhatsApp a resposta, mas só encontram mais alertas sobre os perigos para a família. Sentem vontade de ir para outro lugar. Qualquer lugar em que a família e as pessoas de bem como eles possam viver sem medo.
Ronaldo é bom de bola. Nasceu com nome de craque. E pobre que nem muitos craques nasceram. Estuda, trabalha, mas não acredita que estudo ou trabalho vá mudar sua vida. Trabalhador é só um sujeito que ganha mal e que ninguém respeita. Gente estudada fala bonito, conhece coisas que não interessam a ninguém e nada disso dá dinheiro. Para não ser tratado que nem escravo ou gente inferior, tem que ter grana ou arma na mão.
Ronaldo não é de atirar em ninguém. E morre de medo de tomar tiro. Viu muitos amigos perderem a vida tomando tiro da polícia, de bandido ou vindo do nada. Então, seu caminho é o futebol. Quando for jogar na Europa tudo vai ser melhor. Vai ter casa, carrão, mulher vistosa. Vai ter até chuteira. Vai ser admirado. Vai ser amado. Vai ser respeitado. Vai se sentir gente de verdade. Mas isso só quando for famoso. Só quando for para a Europa.
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Ilustração: Mihai Cauli
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