Na foto, Inês Etienne Romeu

No dia primeiro de março de 2021, a Primeira Seção Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região confirmou a decisão exarada pela MM. Desembargadora Simone Schreiber, na qual acatou recurso do Ministério Público Federal de Petrópolis, para tornar réu um dos integrantes da Casa da Morte de Petrópolis, local de extermínio de presos políticos durante a ditadura civil-militar.

Denunciado pela presa política Inês Etienne Romeu, única sobrevivente daquele centro de extermínio, o então sargento Antônio Waneir Pinheiro de Lima foi acusado de ajudar a manter em cárcere privado a denunciante e de tê-la estuprado diversas vezes. (NR: No final deste texto há um link para um breve relato da história de Inês e um depoimento dado por ela.)

O resultado do julgamento da Turma Especializada foi notícia em toda a mídia. A Rede Globo, que já confessou e se desculpou publicamente por ter colaborado com a ditadura civil-militar, deu com destaque a notícia. Mais que isso, passou a imagem da Inês, essa mesma que seus torturadores e perseguidores não conseguiram eliminar.

Depois de passar muitos anos na prisão política, Inês é libertada por força da Anistia de 1979. Casou-se, voltou a estudar e foi retomando a vida.

Em 2003, já morando em São Paulo, Inês foi encontrada caída e ensanguentada no seu apartamento, com traumatismo cranioencefálico provocado por golpes múltiplos diversos. Na época, trabalhava no Arquivo Estadual. O atentado deixou sequelas físicas profundas, mas não destruiu sua memória, e mesmo com toda dificuldade, permaneceu no firme propósito de denunciar as atrocidades vividas e presenciadas.

No dia de seu depoimento na Comissão da Verdade, repetiu, com detalhe, o tratamento cruel e hediondo perpetrado contra ela no centro de extermínio, local em que foi mantida durante seis meses. Apontou sem nenhuma dúvida o agora réu, que vinha denunciando há mais de 40 anos. Deu nomes, detalhes e municiou a Comissão sobre as violações e crimes de lesa-humanidade praticados naquele local.

Todas as pessoas que têm compromisso com a verdade, com a memória e a justiça estavam profundamente emocionadas com o que assistiam nas telas.

Depois de tantos anos tentando trazer à luz esses crimes, finalmente foram superadas as barreiras e abriu-se uma janela por onde o vento e a luz da esperança puderam entrar.

Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF 153, uma ação declaratória de preceito fundamental protocolada pela OAB, com o intuito de questionar a validade da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) perante os representantes dos Estados (especialmente policiais e militares), que praticaram atos de tortura durante o regime militar. No julgamento, sob a Relatoria do Exmo. Ministro Eros Grau, por sete votos a dois, o Supremo decidiu que a Lei de Anistia foi recepcionada pela Constituição de 1988. A decisão da Corte Suprema passou a ser fartamente usada pelos juízes e tribunais para reconhecer a extinção da punibilidade em processos em que réus eram denunciados por seus crimes hediondos.

A decisão da MM. Desembargadora, que tornou réus os torturadores da Casa da Morte, buscou amparo nos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. Mostrou-se uma conhecedora acurada destes tratados, além de defensora intransigente do Estado de Direito Democrático e do respeito aos Direitos.

Confirmada a decisão, o que passa na mente de cada operador do Direito é a lição de que o direito à vida, à liberdade e à ampla defesa vai além. O resgate da dignidade de uma nação é, na verdade, a coragem de desvendar o véu que encobre tantas atrocidades, apontar seus crimes e identificar o culpado, para que as novas gerações vivam sob a verdade de sua história e tomem a decisão para que esses horrores não se repitam.

Emocionada, parecia que todos na sala viam Inês, já com dificuldades de fala, mas com a firmeza no gesto, dizer: É ESSE! Com certeza! É esse!

A força dessa mulher ultrapassou a morte. E nos traz essa magnífica decisão que, outra mulher, também corajosa e firme, declara:

“Diante de tudo que até aqui foi dito, torna-se inequívoco que o julgamento da ADPF no 153 pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2010, não esgotou e não poderia esgotar a discussão acerca da eficácia da Lei de Anistia, em especial pela superveniência das condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos anos que se seguiram.
Inclusive, foi somente em razão dessa primeira condenação brasileira que se deu a aprovação da Lei 12.528/11, através da qual se criou a Comissão da Verdade, a fim de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas. Observe-se que o Brasil foi um dos últimos países da América Latina a estabelecer comissão desse tipo.(…)
Mesmo diante de condenações vinculantes da Corte Americana de Direitos Humanos e da existência de um movimento regional de revisões das leis internas de anistia frente ao Pacto de São José da Costa Rica, o país e, mais especificamente, o Poder Judiciário, reluta em lidar com o seu passado e adotar um modelo transicional adequado às obrigações jurídicas assumidas no plano internacional. Essa dificuldade de enfrentar as graves violações cometidas em nome do Estado está amparada em uma cultura do esquecimento, da qual algumas das consequências, reconhecidas pela comunidade internacional, são a perpetuação de estruturas de poder autoritárias e legitimação de violências policiais e torturas cometidas nos dias de hoje contra a população civil.”

A decisão abre caminho para que o país se encontre com sua verdade e, a partir dela, encontre um caminho para a construção de um verdadeiro Estado de Direito Democrático, calcado na verdade histórica.

As mulheres brasileiras, em suas diversas épocas, têm dado exemplo de bravura, independência e coragem. Inês é prova de que sua força vai além da vida, e como ela mesma diz: missão cumprida!

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Veja aqui o vídeo com o depoimento histórico de Inês Etienne Romeu sobre a Casa da Morte e sua biografia, publicado por Eduardo Scaletsky.

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