Fanatismo religioso e Jesus nas manifestações bolsonaristas

“Tudo isso é tão claramente infantil, tão alheio à realidade…”  (Freud, em O Mal-estar na Civilização) 

O repertório de imagens caricaturais produzidas pelos próprios figurantes teria algo de anedótico não fosse, antes, patético e, em alguma medida, aterrorizante. Como a do homem do caminhão, o corpo como uma cruz grudada contra o para-brisas e o radiador, ou a da fila de fiéis ajoelhados numa estrada orando para uma bateria de caminhões como se se tratasse de uma recém inventada divindade, ou a da tempestade que se abate como uma punição divina sobre as barracas dos acampados em Brasília (enquanto filma a tormenta, a fiel clama piedade, “Em nome de Jesus! Em nome de Jesus! Em nome de Jesus”, mas o Senhor não parece escutar suas preces e a bruta realidade do temporal insista em se impor), ou a daquelas mulheres e homens orando em desespero frenético, as mãos grudadas ao muro de um quartel em Niterói como se fora o próprio muro das lamentações de Jerusalém, ou, ainda, a da atriz global rezando contrita de joelhos no asfalto da avenida Atlântica debaixo de chuva. (A mesma atriz, depois, publicou um texto tergiversante se queixando das repetidas censuras que lhe foram feitas para afirmar seu direito de escolha e manifestação religiosa. Ninguém a criticou por rezar o Pai Nosso ou votar em “a” ou “b”, mas por negar a escolha popular expressa nas urnas e estimular o golpismo.) As cenas se repetem e se repetem como uma litania. São raras as variações. 

O que afirmam é a negação absoluta do outro. O apagamento daqueles que não partilham, não as suas escolhas, mas a fé e a representação do mundo que é deles e unicamente deles. E, ao mesmo tempo, a onipresença do delírio (aquilo “que se caracteriza pelo fato de estar em total contradição com a realidade” – em Dicionário de Psicanálise, Elizabeth Roudinesco e Michel Plon) como guia para os seus discursos, parâmetro para as suas ações. Eu tenho comigo a fé, o Senhor me protege, a realidade que se dane. Nós não reconhecemos seu estatuto de realidade. A eles pouco interessa que a escolha e assim também a maneira de realiza-la tenham sido estabelecidas num pacto firmado antes e desde muito. O mesmo e singelo pacto (as regras básicas que norteiam uma eleição no chamado Estado democrático de direito) que quatro anos atrás lhes deu por quatro anos o comando do país. Nada mudou entre o evento que consagrou seu eleito e aquele que expressamente o demitiu.  

Mesmo de longe é estarrecedor apreciar o espetáculo. 

É a política talvez na sua pior variante, alimentada pelo combustível da obsessão religiosa – ainda que, por detrás da encenação, estejam, claramente identificáveis, os interesses objetivos, econômicos, sociais, culturais, que norteiam o mandato e o mandatário.  

É claro que a política, por sua própria natureza, estará sempre mais ou menos orientada pelas pulsões e os fervores que fervilham no inconsciente e, nesse sentido, terá também algo de religioso. São demasiado óbvias as demonstrações de que as escolhas dos eleitores têm muitas vezes bem pouco de racionalidade – de que outro modo os interesses exclusivos de pequenas minorias sociais poderiam ser legitimados pelo voto das imensas maiorias, como rotineiramente o são?    

Enquanto isso, cansado e exaurido o país e suas instituições (pessoas, classes sociais, grupos de interesse, sindicatos, meios de comunicação, boa parte das igrejas e seus fiéis, as torcidas organizadas…) se esforçam para deixar para trás o que para trás ficou. O processo eleitoral se encerrou com a inquestionável vitória de um dos contendores. É o que a regra pede e exige. Por isso mesmo, talvez fosse melhor largar de lado essas lamentáveis cenas de primitivismo político e religioso, “essa irrupção do irracional” (C. Schorske) como fenômeno de massa, legar ao olvido uns personagens tão precários quanto marionetes de barro (talvez o barro primordial que moldou Adão e Eva), deixando-os imersos na insignificância da sua miséria espiritual. Mas seria um imenso logro imaginar que esses fluxos de devoção incontida são parte de um fenômeno com data vencida e que eles logo deixarão o palco. Ao contrário, eles vieram para ficar. E o que sua consolidação poderia estar pré-anunciando é, como em Viena na transição do século XIX para o XX, nada menos que “a sombria transição da política democrática para o protofascismo” (id.).  

Um bem comportado burguês vienense

As análises se sucedem umas às outras, quase como anátemas proferidos por um velho comunista inconformado. A uns e outros poderia soar como reprimendas, tão corrosivas são as palavras. Numa delas, o analista afirma que a maneira de proceder da religião “consiste em rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência”.  

Quanto “às necessidades religiosas, prossegue esse anarquista radical, parece-me irrefutável a sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por ele”.  

Noutro trecho se refere ao fiel. Quando “o crente se vê finalmente obrigado a falar dos ‘inescrutáveis desígnios’ do Senhor, está admitindo que lhe restou, como última possibilidade de consolo e fonte de prazer no sofrimento, apenas a submissão incondicional. E, se está disposto a isso, provavelmente poderia ter se poupado o rodeio”, conclui bem humorado o texto. 

Finalmente, sem sequer uma dose de clemência, escreve:  

“É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade. Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe”.  

Essas sentenças não foram escritas por qualquer incendiário seguidor de Bakunin, ou por qualquer lunático que denega a realidade, mas por um bem comportado e próspero, além de clarividente, cidadão do império austro-húngaro conhecido como dr. Freud  – com  consultório estabelecido  na Berggasse 19, 1090, em Viena e comprovada existência na Terra. 

A versão mais brutal da fé e da religiosidade foi convocada a ir às urnas

Mas do que Freud está tratando aqui, ainda que não ignorasse os perigos de suas irrupções mais alucinantes na vida da sociedade, é da religião em seus termos corriqueiros, com os quais os não religiosos convivem e na qual também são aceitos em boa paz e cordialidade. Não do delírio religioso que agora mesmo insiste em se mostrar nessas exibições grotescas que invadem o espaço público no Brasil – e que tantas vezes vimos contaminar o mundo da política em quase todos os cantos do planeta nessas últimas quatro ou cinco décadas. O termo fundamentalismo religioso criado para se referir aos clérigos que governam países de maioria muçulmana e suas bases sociais ensandecidas se adapta perfeitamente ao ambiente criado pelos bolsonaristas, se é que em alguns aspectos não é ultrapassado por ele. O único porém é que o bolsonarismo e suas bases talvez sejam demasiado simplórios para que possa ser comparado às variantes mais radicalizadas do islã.  

Em sociedades cultural e socialmente mais avançadas (ainda que isso não seja garantia de nada – veja-se a Alemanha dos anos 1930, o país na Europa que por então mais tinha universidades, bibliotecas e salas de concerto proporcionalmente ao número de seus habitantes) essas manifestações de fé caracterizadamente religiosas já não ocupam papéis relevantes, sequer nos partidos da renascida ultradireita europeia. Nesse aspecto, ao bolsonarismo talvez se possa creditar um papel verdadeiramente inovador dentro do mundo ocidental. Nem o trumpismo se atreveu a tanto – ainda que também tenha aberto as portas do inferno para trazer à superfície o que há de mais tenebroso na alma humana. 

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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