Em dezembro de 2014, foi entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade em cerimônia oficial realizada no Palácio do Planalto. Os trabalhos da CNV comprovaram que os anos de chumbo ainda fazem parte da memória nacional, contribuindo para uma eterna reconstrução de um imaginário social sobre o período muitas vezes considerado um dos mais violentos na História do país. Nesse momento, o Brasil parecia, enfim, estar enfrentando o seu passado torturante, silenciado pela Lei da Anistia. Entretanto, quando parecíamos caminhar para frente, a sombra do passado voltou a atormentar o país.
Em 2016 o passado da ditadura voltou a aparecer em toda a imprensa nacional, quando aqueles que queriam o impeachment da presidente Dilma Rousseff foram acusados de golpistas, pois estariam repetindo as atitudes que levaram à deposição do presidente eleito João Goulart pelo golpe de 1964. Em 2017, o ex-presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva foi preso, sob acusação de corrupção e lavagem de dinheiro. O processo que resultou em sua condenação foi questionado por grande parte das esquerdas brasileiras, acusado de ser fraudulento e inconstitucional, visto que ignoraria a presunção de inocência e teria fins políticos. O objetivo seria impedir a candidatura de Lula nas eleições seguintes. Finalmente, em 2018, foi eleito presidente da República, Jair Messias Bolsonaro – homem que defende publicamente a ditadura e tem como herói pessoal General Brilhante Ustra, torturador de Dilma e de tantas outras vítimas. Esses recentes e virulentos eventos tiveram algo em comum: eles trouxeram à tona, para o debate da cena pública, o passado autoritário do país.
Toda essa crise política e moral, e essa volta ao passado, aconteceu enquanto eu estava realizando o meu doutorado em Sociologia na UFRJ. Tentando entender melhor essa situação, entre 2016 e 2020, analisei as memórias políticas sobre o ex-presidente João Goulart, argumentando que reputações históricas são disputadas e “estão em jogo”. Por ser figura central em um dos eventos mais traumáticos do país – o golpe de 1964 –, a memória de Jango é carregada de ideologias e simbolismos, evidenciando diversas questões sociais presentes no Brasil de hoje, como o conflito entre democracia e autoritarismo, por exemplo. Ademais, como a imagem de Goulart é marcada pela controvérsia, ela acaba por exemplificar a pluralidade de representações sociais possíveis de serem construídas sobre uma mesma figura histórica
Assim, ao longo do doutorado, me debrucei sobre cinco questões de pesquisa. São elas: Quais são as memórias sobre João Goulart? Como as memórias sobre ele são construídas? Por que elas são construídas? Por quem elas são construídas? E essas memórias mudaram ao longo do tempo?
Para compreender esse processo, realizei 22 longas entrevistas. Os entrevistados foram Agostinho Guerreiro, Almino Affonso, Anita Prestes, Arnaldo Mourthé (in memoriam), Carlos Fayal, Cecília Coimbra, Clóvis Brigagão, Daniel Aarão Reis, Dulce Pandolfi, Eduardo Costa, Eliete Ferrer, Flora Abreu, Ivan Pinheiro, Marcello Cerqueira, Maria Prestes (in memoriam), Milton Temer, Pedro Luiz Moreira Lima, Raphael Martinelli (in memoriam), Sílvio Tendler, Tânia Fayal, Trajano Ribeiro e Victória Grabois.
Essas entrevistas foram todas realizadas em um momento de crise e angústia para aqueles que defendem a democracia no Brasil. Felizmente hoje voltamos a ter esperança, confiando que o resultado do segundo turno das eleições traga uma luz no fim do túnel. Mesmo assim, esse nosso passado ainda nos coloca para pensar. Para aqueles que, assim como eu, ainda gostam de revirar o passado, o resultado da minha pesquisa pode ser encontrado em meu livro, O Passado em Disputa: memórias políticas sobre João Goulart, que acaba de ser publicado e está a venda no site da editora 7Letras. Ao fim do livro, chego à conclusão de que hoje vivemos uma nostalgia democrática, em que olhar para tempos melhores do passado nos ajuda a sobreviver ao presente.
Boa leitura!
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