The Office of International Intellectual Property Enforcement (IPE) represents the genius of America to the world. Reflecting America’s imagination, intellectual property is the lifeblood of our economy. The Office of Intellectual Property Enforcement (IPE) advocates for the effective protection and enforcement of intellectual property rights (IPR) around the world. (Relatório do IPE)

Essa epígrafe, retirada da apresentação de um órgão do Departamento de Estado norte-americano sintetiza a importância conferida por este país ao instituto da propriedade intelectual. Daí a enorme surpresa a declaração do seu governo, anunciada pelo presidente da república em 5 de maio, apoiando a iniciativa de suspender temporária e coletivamente as patentes das vacinas contra o SARS-CoV-2 na vigência da atual pandemia. Isso porque a posição dos Estados Unidos no campo da propriedade intelectual tem sido, historicamente, vinculada à defesa do regime de patentes e ao enforcement daqueles países que não seguem suas recomendações. Anualmente, ele atualiza uma lista de países que, no ponto de vista de seu governo, não respeitam ou mesmo não são suficientemente rigorosos no respeito às patentes e que, por esse motivo, podem sofrer retaliações no campo comercial. (Special 301 Report)

Em outubro passado, África do Sul e Índia apresentaram no Conselho de TRIPS na Organização Mundial do Comércio uma proposta de suspensão das patentes das vacinas anti-COVID. Foram acompanhadas por 97 países e tiveram a oposição dos países ricos, com a adesão de alguns trânsfugas, como o Brasil. (WTO TRIPS Council) Essa iniciativa não foi encerrada e encontra-se paralisada. Talvez, o principal efeito prático da declaração de Biden seja o de colocar novamente “a bola em jogo” o que é positivo, mas não garante a vitória no final da partida. Parece ter contribuído para a declaração de Biden o recente manifesto, de meados de abril, de 195 personalidades dentre ex-presidentes e premiados Nobel endereçado a ele em favor da suspensão.

A reação à proposta norte-americana veio de várias partes, começando internamente naquele país, a começar pela poderosa Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, (PhRMA), guilda das grandes indústrias farmacêuticas dos Estados Unidos. A Organização Mundial da Saúde e a China, desde o ano passado já haviam proposto que durante a pandemia as vacinas fossem consideradas bens públicos mundiais. Após o anúncio de Biden, França e Rússia se pronunciaram favoráveis e a Alemanha se opôs. O mundo em desenvolvimento aplaudiu francamente a medida com um silêncio constrangedor do governo brasileiro, mitigado por uma envergonhada declaração do novo chanceler de que nosso país poderia mudar sua posição.

Em linhas gerais, esses são os fatos políticos mais recentes relacionados à escassez de vacinas anti-covid e à iniquidade de sua distribuição pelo planeta. Este texto busca dissecar a decisão de Biden e algumas das consequências da mesma.

Não há qualquer novidade em afirmar que a corrida na disputa sobre quem primeiro lançaria no mercado uma vacina contra o SARS-CoV-2 foi intensamente disputada durante todo o ano de 2020 pelos Estados Unidos, China e Rússia que, não por acaso, são os vértices das grandes disputas geopolíticas atuais. Uma primeira observação sobre a nova posição dos Estados Unidos é que, com ela, o país se coloca perante o mundo em alinhamento humanitário com seus dois principais contendores geopolíticos. Algo que seria impensável na estratégia geopolítica isolacionista de Donald Trump e que remete a análise para a postura tradicional do partido Democrata no que se refere às suas ferramentas de conquista de hegemonia, sinteticamente denominadas de “liberal-cosmopolitismo globalitário” por José Luís Fiori.

Dentre essas ferramentas, destaca-se a categoria de Soft Power atribuída a Joseph Nye,Jr, cientista político docente da Universidade Harvard e que ocupou importantes papeis de conselheiro e mesmo de funcionário graduado nos governos democratas de Carter e, principalmente, Clinton. A categoria foi desenvolvida em livro de 1990 [Nye Jr, JS – Bound To Lead: The Changing Nature Of American Power. 307 pp, Basic Books, 1990.], ao final da década de ouro do neoliberalismo de Reagan (1981-1989) e do Consenso de Washington (1989). Sugere que a política externa do governo norte-americano, terminada então a Guerra Fria, deveria voltar-se a uma busca de hegemonia pelo exemplo, mais do que pelas armas. Alguns anos depois, pressionado pela realidade das intervenções militares americanas no Oriente Médio, pragmaticamente deslocou sua orientação de Soft para Smart Power, prescrevendo uma política externa com a utilização de exemplos e armas, quando coubessem. Portanto, entendo que em um plano analítico mais geral, o ato de Biden marca um retorno ao já mencionado “liberal-cosmopolitismo globalitário” ao lado da volta à Organização Mundial da Saúde, ao G7 e a uma leve distensão na política migratória. Naturalmente, em relação aos eixos fundamentais da geopolítica, China e, principalmente, Rússia, o pêndulo permaneça mais do lado bélico da estratégia do Smart Power.

Ao lado do seu significado político, vale avaliar o que poderíamos chamar de alcance executivo do comunicado de Biden. Em outros termos, quais são os obstáculos para que o gesto se torne uma ferramenta para mais vacinas e mais equidade em sua distribuição pelo mundo.

Em primeiro lugar, existe a necessidade de consenso nas decisões dos organismos multilaterais do sistema das Nações Unidas, bem como seu caráter não-vinculante. Basta um país não abraçar uma proposição, mesmo que apoiada por todos os demais, para que ela não seja recomendada. É certo que a adesão dos Estados Unidos a uma proposta faz com que sua aceitação cresça exponencialmente. O poder amolece corações e isso é o que se vê, por exemplo, na posição da União Europeia que, de uma negação de primeira hora, vai se deslocando a uma posição de apoio.

O caráter não vinculante significa que cada nação é soberana para aplicar e como aplicar as resoluções, podendo-se imaginar que em uma situação de consenso no âmbito da OMC, um parlamento nacional decida em sentido contrário, o que resultará em uma não adesão na prática à medida aprovada na OMC. Essa possibilidade existe inclusive no parlamento norte-americano, no qual a maioria democrata é frágil e cogita-se haver senadores e deputados democratas que não apoiam a posição de Biden.

Vinculada a essa circunstância e incidente também nos Estados Unidos, é o poder da Big Pharma. Este segmento tecnológico-industrial é o que mais contribui com recursos financeiros de lobby, dentro e fora de épocas eleitorais. Em 2020, das 10 maiores empresas farmacêuticas (40% do mercado mundial), há cinco norte-americanas, duas suíças, uma britânica, uma francesa e uma chinesa. Com a possível exceção da chinesa, todas negociam suas ações na bolsa de Nova York e, ao lado dos assuntos militares, é aí que reside o poder dos Estados Unidos.

Finalmente, ao largo da discussão política, existe uma questão tecnológico-produtiva. Uma vertente dessa discussão é a urgência. O mundo precisa de mais e melhores vacinas anti-COVID para ontem. Haverá capacidade instalada industrial que atenda a essa urgência? Embora não haja dados empíricos, suspeita-se de que a maior parte dessa capacidade industrial já esteja mobilizada e nos limites de produção. Cogita-se a adaptação de indústrias que produzem vacinas animais, mas deve-se ponderar que as exigências regulatórias para essas vacinas estão bem abaixo das exigidas para vacinas humanas.

Outra vertente reside na capacidade de empresas absorverem rapidamente a tecnologia de algumas das vacinas, em particular daquelas que utilizam plataformas mais modernas. A revista Nature recentemente identificou dez rotas de desenvolvimento de vacinas contra o SARS-CoV-2 das quais, entendo eu, apenas duas têm condições de serem mais rapidamente absorvidas por empresas sem grandes competências tecnológicas vacinais já instaladas. São essas as vacinas de vírus atenuados e inativados.

Encerro aqui com a esperança de que o gesto de Joe Biden seja capaz, se não de alterar rápida e significativamente a quantidade e a iniquidade atuais no panorama das vacinas anti-COVID, de pelo menos alterar a política global de patentes hoje estabelecida em bases exclusivamente comerciais e afastada de objetivos sanitários mais amplos.

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Sobre o mesmo tema, leia “A União Europeia e a libertação das patentes“, de Halley Margon