O Brasil chegou no momento mais dramático da pandemia da Covid-19 no mês de março, com seguidos recordes em números de mortes e hospitais com lotação máxima em quase todo o país. Esse cenário obrigou governadores e prefeitos a ampliarem as restrições de funcionamento das atividades econômicas e da circulação de pessoas, o que mais uma vez gerou protestos, principalmente por parte dos empresários e trabalhadores autônomos.

Desta vez, até mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que a saúde vem em primeiro lugar. Contudo, assim como no ano passado, as medidas econômicas estão demorando para serem implementadas.

Em 13 de março de 2020, em uma entrevista concedida à Revista Veja, Paulo Guedes afirmou que 3 a 5 bilhões de reais resolveriam o problema da pandemia. Como sabemos, a realidade (e o Congresso, diga-se) impôs uma situação completamente diferente. De acordo com o Tesouro Nacional Transparente, até o final do ano passado o tesouro nacional havia efetuado gastos na ordem de R$ 524 bi em medidas relacionadas à Covid-19, dos R$ 604,7 bi previstos. Apenas o auxílio emergencial foi responsável por R$ 293,11 bi (91% do orçamento previsto), equivalente a 56,94% dos gastos totais.

Essa medida pode ser considerada o carro-chefe das políticas de combate aos efeitos da pandemia. Para se ter uma ideia da sua magnitude, os dados da PNAD Covid-19 do IBGE revelam que em novembro 41% dos lares do país recebiam o auxílio emergencial e 36% dos seus beneficiários o tinham como única renda. O auxílio foi especialmente importante para os estados das regiões Norte e Nordeste. Treze dos 16 estados dessas regiões tinham acima de 50% dos lares recebendo o auxílio emergencial, sendo o Amapá aquele com maior percentual: 70,1%. Em seguida vinham Pará (61,1%) e Maranhão (60,2%). Considerando as outras regiões, os dois estados com menor proporção eram Rio Grande do Sul (27%) e Santa Catarina (22%).

Além da relevância social, o auxílio emergencial teve impacto econômico de grande magnitude. O grupo de estudo Made da FEA/USP estimou que o efeito do auxílio emergencial sobre o PIB de 2020 foi superior a quatro pontos percentuais e reduziu a queda para menos da metade do que seria sem ele. Ademais, o mesmo estudo estimou que a dívida em relação ao PIB teria subido três pontos percentuais a mais, caso não houvesse esse programa.

A lógica desse efeito sobre a economia já é sabida desde Keynes: indivíduos com menor nível econômico tendem a ter maior propensão a consumir, o que gera um elevado efeito multiplicador dos gastos com auxílio emergencial sobre a renda. Outra vantagem desse tipo de gasto é a concentração em bens e serviços de produção nacional. De acordo com cálculos do IPEA, enquanto as famílias de renda muito baixa gastam 46,1% da renda com alimentação e habitação, as de renda alta gastam 23,2%. Adicionalmente, itens da cesta básica são ainda mais concentrados em produtos nacionais comparativamente a uma cesta de alimentos de alta renda. Ou seja, o multiplicador de gastos é elevado porque combina alta propensão a consumir com baixa propensão a importar. Em termos de efeitos tributários, seus impactos são especialmente importantes no Brasil, pois nossa tributação é fortemente concentrada em bens de consumo.

O segundo maior gasto ocorreu com o auxílio financeiro aos Estados, Municípios e DF, o qual totalizou R$ 78,25 bi, sendo o único gasto efetivo que superou o previsto, em R$ 60 mi. Em termos de valores absolutos, os estados da região Sudeste concentraram as verbas, recebendo R$ 15,12 bi dos R$ 44,36 bi destinados aos estados, equivalendo a 34,09%. A seguir, vêm os estados da região Nordeste (27,32%), Norte (14,47%), Sul (13,4%) e Centro-Oeste (10,75%). O Rio Grande do Sul recebeu R$ 2,33 bi, o suficiente para compensar a queda da receita com ICMS entre março e dezembro de 2020 comparativamente a 2019, a qual totalizou R$ 1,1 bi, e o aumento com gastos de custeio relacionados à pandemia, que foi de R$ 770 mi (dados da Receita da Fazenda RS). Contudo, caso tivesse sido confirmada a previsão de queda na receita do governo do Estado em junho, entre 3,2 e 3,8 bilhões de reais, esse repasse não teria sido suficiente.

A terceira modalidade de recursos que efetuou mais gastos foi a das Cotas dos Fundos Garantidores de Operações Financeiras e de Crédito, cujo montante previsto de R$ 58,09 foi totalmente pago. Conforme detalhado no Relatório de fevereiro de 2021 do grupo Observatório do Sistema Financeiro do IE-UFRJ, os primeiros recursos foram destinados para recapitalizar dois fundos já existentes, o Fundo Garantidor de Operações (FGO) e o Fundo Garantidor de Investimentos (FGI). O primeiro fundo originou o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) e o segundo, o Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (Peac). Em termos de percentual de garantia, o aporte do tesouro assegurava 85% das operações e até 85% do total da carteira de cada agente financeiro, além de contar com a complementariedade de 15% do Fampe, do Sebrae, para as operações. Já o segundo, cujo alvo eram as empresas de pequeno e médio porte, tinha garantia de até 85% por operação e apenas 30% do total da carteira.

Outras duas modalidades receberam recursos mais vultosos. A quarta foi referente às Despesas Adicionais do Ministério da Saúde e Demais Ministérios, a qual totalizou gastos da ordem de R$ 42,70 bi, equivalente a 92,16% do previsto. Essa rubrica teve como principais medidas a contratação de profissionais da saúde, insumos, medicamentos, ventiladores pulmonares (que mesmo assim chegaram a faltar em alguns lugares), habilitação de leitos de UTI para casos graves e gravíssimos, e equipamentos de proteção individual.

A quinta e última despesa efetuada que ultrapassou os 10 bilhões de reais foi com o Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, cujo montante efetivamente gasto foi de R$ 33,50 bi, apenas 65% do previsto. A lógica do programa funcionava da seguinte maneira: nos casos de suspensão temporária do contrato de trabalho, o empregado receberia 100% do valor equivalente ao do seguro-desemprego. Se o empregador mantiver 30% da remuneração, o benefício fica em 70%. Também se implementou o programa para redução da jornada de trabalho através da medida provisória (MP) 936, igualmente compensada com acesso ao seguro-desemprego de forma proporcional ao tamanho da redução.

Os outros programas em ordem decrescente de despesa efetuada foram entre parênteses o valor efetivamente gasto em bilhões de reais e o percentual em relação ao previsto): sexto programa: Concessão de Financiamento para Pagamento de Folha Salarial (6,81/100); sétimo: Programa Emergencial de Acesso ao Crédito – Maquininha (5,00/50); oitavo: Financiamento da Infraestrutura Turística (3,08/61,6); nono: Aquisição de Vacinas (2,22/9,05); décimo: Transferência para Conta de Desenvolvimento Energético (0,90/100); e décimo primeiro: Ampliação do Programa Bolsa Família (0,37/100).

A partir do levantamento das medidas implementadas pelo governo em 2020, observa-se que, de fato, foi empregado um conjunto amplo de medidas e ao menos cinco delas contaram com aportes de grande monta. Os problemas das ações do governo se referem à demora de sua implementação e aos erros estratégicos iniciais que fizeram com que tais medidas demorassem a chegar às pessoas, tanto físicas, quanto jurídicas. O auxílio emergencial – de R$ 200,00 na proposta do Governo e aumentado pelo Congresso para R$ 600, podendo chegar a R$ 1.200 por família – passou a ser efetivamente pago apenas no dia 9 de abril, mas apenas para quem já tinha cadastro prévio. Ademais, estabeleceu-se um prazo superior a 30 dias para saques e transferências.

De todos os programas, dois deles foram especialmente letárgicos: os programas relacionados ao crédito e à compra de vacinas. Sobre os primeiros, conforme pesquisa do Sebrae, realizada entre 30 de abril e 5 de maio, apenas 14% dos pequenos e médios empresários que solicitaram acesso ao crédito tiveram seu pedido atendido. No início da pandemia, as medidas de política creditícia do governo atuaram somente na ampliação da liquidez do sistema financeiro, reduzindo os patamares de encaixes bancários e de capital mínimo. Contudo, diante da incerteza mais exacerbada, as instituições financeiras represaram essa disponibilidade de recursos. Apesar de os bancos públicos não atuarem de forma mais agressiva, nos moldes do que ocorrera na crise financeira global de 2008/09, apenas os créditos com base nos recursos direcionados se elevaram; o crédito com recursos livres chegou a ser reduzido em abril. Apenas com a implementação do Pronampe, o crédito chegou a um número maior de empresas. Conquanto promulgado em 19 de maio, seus recursos foram liberados para uso na Caixa Econômica Federal em 10 de junho, no Banco do Brasil em 7 de julho e nos demais bancos somente em 15 de julho, quando os maiores períodos de restrição já tinham passado.

O caso mais grave ocorreu na compra de vacinas, em que o dispêndio se limitou a apenas 9,05% do previsto, disparado o menor percentual do valor efetivamente pago em relação ao previsto. Ou seja, não foi por falta de recursos que o governo deixou de antecipar a compra de vacinas, limitando-se de maneira deliberada a poucas opções. Provavelmente, se estivéssemos com um plano mais acelerado de vacinação em massa a situação atual seria bastante distinta, tanto na questão da saúde quanto na economia. Embora vidas importem mais que a economia, seguirei com o foco na análise econômica.

Pretendo frisar que, sendo mérito do Governo ou imposição do Congresso, de fato a economia do país teve um desempenho não tão ruim quanto as expectativas do início do ano passado apontavam, mesmo com a demora da efetivação de alguns programas. Todavia, para 2021, a previsão de gastos no combate à Covid-19 está limitada a 40,48 bilhões de reais, apenas 6,67% do previsto para 2020. Mesmo com a promulgação da PEC 186, que vinculou sua aprovação à retomada do auxílio emergencial em quatro parcelas que variam de R$ 150 a R$ 375, sem possibilidade de duplicação por família, a previsão total para 2021 ficaria em R$ 84,48 bilhões.

Diante da escassez de vacinas, expansão desenfreada de contaminações e novas variantes, não se pode esperar que o volume de recursos para 2021, inferior a 15% àquele destinado para 2020, seja suficiente para evitar uma catástrofe na saúde e na economia. Em pronunciamento no dia 26 de janeiro, Paulo Guedes afirmou que se viesse uma segunda onda estaríamos mais bem preparados do que no ano passado para adotar as medidas econômicas cabíveis. Já estamos com praticamente duas mil mortes diárias e novas medidas ainda estão no âmbito da discussão, como a reedição da medida provisória (MP) 936 e do PRONAMPE. Implementações de lockdowns mais rígidos parecem ser cada vez mais necessários e urgentes. Como contrapartida, o mínimo que poderia se esperar por parte do governo federal era uma reedição das medidas implementadas no ano passado.

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Artigo publicado originalmente no Sul 21, em 10.03.2021.