Há que se avançar com maior ousadia no redesenho de instrumentos financeiros já existentes e nas novas fronteiras de financiamento

Em seu retorno ao poder, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem tido uma intensa agenda internacional, marcada pela busca de reverter a imagem negativa amealhada pelo país nos últimos anos, especialmente em temas de interesse multilateral. No que concerne à crise climática, que se agrava a cada ano, seus discursos enfatizam a gravidade do problema, sua origem nos padrões energéticos, produtivos e de consumo da era industrial e seus efeitos assimétricos. Os países que se industrializaram e enriqueceram antes contribuíram mais para os problemas atuais; ao passo que os eventos climáticos extremos atingem mais os segmentos vulneráveis das populações, especialmente nos países de menor renda. Na perspectiva do Sul Global, caberia ao Norte criar condições de financiamento para a reconversão de infraestruturas e a descarbonização.

No Brasil, o segundo governo Lula estabeleceu, em 2009, a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº 12.187) e criou o Fundo Clima – Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (por meio da Lei 12.114), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e gerido pelo BNDES. Este Fundo garante recursos para projetos, estudos e financiamento de empreendimentos que tenham como objetivo a mitigação das mudanças climáticas. Em uma década e meia, seu uso foi modesto. Em julho de 2023, este instrumento tinha saldo contábil de R$ 1,5 bilhão, já comprometido com projetos aprovados pelo banco estatal.

Os relatórios anuais de gestão do Fundo Clima sugerem que os recursos alocados em financiamentos reembolsáveis e não reembolsáveis são tímidos. O BNDES informa ter utilizado R$ 446,1 milhões em recursos do Fundo Clima em 2022. Para se colocar em perspectiva, a principal fonte oficial de funding para o BNDES, o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), gerou R$ 372,4 bilhões para o banco de desenvolvimento em 2022. O Fundo Clima equivaleu a 0,1% do FAT e proporção ainda menor do saldo da carteira de crédito e repasses de R$ 468,7 bilhões do BNDES. Este importante banco público foi a primeira instituição financeira do país a emitir títulos verdes, em 2017.

Em 2023, diante de um cenário de abandono das políticas públicas voltadas ao equacionamento dos desafios criados pelas mudanças climáticas, o terceiro governo Lula tenta retomar iniciativas inovadoras no âmbito nacional. Foi criado o Comitê de Finanças Sustentáveis Soberanas (Decreto nº 11.532/2023) e, a partir deste, o Arcabouço Brasileiro para Títulos Soberanos Sustentáveis (“Arcabouço”). Este é um guia para a emissão de instrumentos de dívida soberana com uso de recursos lastreados em despesas orçamentárias que contribuam diretamente para a promoção do desenvolvimento sustentável do país. Cria-se espaço adicional para acesso ao mercado global destes instrumentos, o qual se aproxima de um estoque no valor de US$ 4 trilhões.

Na reforma tributária em discussão no Congresso Nacional, o tema ambiental emerge na possibilidade de diferenciação de alíquotas. A reforma prevê a substituição de cinco tributos por dois Impostos sobre Valor Agregado (IVAs): Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com unificação de IPI, PIS e Cofins, de gestão federal; e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com unificação do ICMS (estadual) e ISS (municipal) e gestão compartilhada entre estados e municípios. Há a possibilidade de se introduzir alíquotas diferenciadas entre atividades/setores que geram efeitos negativos sobre o objetivo de reduzir as emissões líquidas de CO2. Isto foi reconhecido por instituições que atuam na área ambiental. Assim, por exemplo, o Manifesto pela Reforma Tributária 3S (Saudável, Sustentável e Solidária), assinado por cerca de setenta entidades, entre elas o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e a Oxfam, aponta para lacunas específicas, especialmente para o fato de a regulamentação da diferenciação de alíquotas ser remetida à legislação complementar.

Nos últimos anos, enquanto no Brasil predominava a destruição, em países de alta renda e nas instituições oficiais multilaterais a questão das “finanças sustentáveis”, da qual o tema das “finanças verdes” faz parte, ganhou maior relevo.

Finanças sustentáveis no mundo: meio ambiente e desigualdades sociais

As Nações Unidas lideram os debates sobre o financiamento do desenvolvimento nos marcos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável com seus respectivos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS). Em estudo recente, constatou-se que o estoque de créditos “sustentáveis” (bancários e de instrumentos de dívida vinculados aos temas ambientais e sociais) atingiu US$ 35,3 trilhões, o que equivale a 7,5% do estoque global de dívidas, de US$ 469 trilhões. Se em proporções este segmento ainda é pequeno, seu ritmo de expansão foi 4 p.p. superior ao verificado no conjunto dos mercados de dívida. Nestes, por sua vez, predominam padrões de atuação dos intermediários que não discriminam atividades, setores e empresas que utilizam combustíveis fósseis ou comprometem as metas de redução das desigualdades.

Ainda assim, o setor privado tem desenvolvido mecanismos de adesão voluntária às boas práticas sociais, ambientais e de governança, com particular ênfase aos princípios ESG (do inglês “Environmental, Social and Governance”), como os “Princípios para um Banco Responsável”. Para reforçar os mecanismos de crédito no sentido da descarbonização e do enfrentamento aos desequilíbrios sociais, instituições oficiais e pesquisadores independentes defendem ser preciso fortalecer a capacidade de os governos (nacional e locais) tributarem adequadamente pessoas físicas e jurídicas, tanto em termos de volume como de estrutura, evitando-se vieses que prejudiquem os ODS.

Aspectos como progressividade versus regressividade da tributação afetam a dimensão distributiva e, assim, a desigualdade social. Isenções e subsídios para setores intensivos na utilização de combustíveis fósseis vão de encontro às metas de descarbonização da economia global. Um exemplo de aprimoramento trazido pela ONU (United Nations, 2023, p.46) está nos subsídios agrícolas, que consomem 5,4% do PIB global. Outros segmentos promissores na geração de recursos tributários adicionais são todas as atividades associadas à economia digital, à tributação em empresas offshore, controle de ilícitos diversos e lavagem de dinheiro. Estas possibilidades enfrentam dificuldades adicionais por dependerem de acordos multilaterais e da efetividade dos mecanismos de controle, doméstico e internacional.

A emissão de títulos sustentáveis tem o potencial de alavancagem de recursos, pois é um funding alternativo para instituições financeiras que ofertam crédito ou para empresas de maior porte com acesso no mercado de capitais. A demanda por títulos verdes tem aumentado, o que se explicita em preços de mercado, nos prêmios de emissão. O mesmo ocorre com “títulos ODS” (SDG bonds) ou outros títulos temáticos. Estudo recente do Banco Mundial (World Bank, 2022) estima em US$ 3,5 trilhões o estoque de ativos em títulos NDC (títulos nacionais emitidos para atingir metas da Agenda 2030) e SDG, bem como avalia um importante espaço de expansão. “É estimado entre US$ 5 trilhões e US$ 7 trilhões o volume necessário de recursos em todo o mundo para financiar e cumprir os ODS… Somente nos países em desenvolvimento, o investimento nos ODS precisa variar de US$ 3,3 trilhões a US$ 4,5 trilhões para infraestrutura básica, segurança alimentar, mudança climática, mitigação e adaptação, saúde e educação” (World Bank, 2022, p. vii, tradução nossa)

A UNDP (2023) tem estimativas equivalentes às do Banco Mundial e, com o benefício de ter acesso aos dados completos de 2022, indica um estoque global de US$ 3,7 trilhões em títulos temáticos, como emissões estimadas em US$ 863,4 bilhões em 2022. Este último valor representou 5% das emissões internacionais de todos os tipos de títulos. O “Environmental Finance Data” mapeia emissores, gestores e modalidades de instrumentos. Seus resultados agregados estão disponíveis de forma aberta e indicam um estoque em agosto de 2023 da ordem de US$ 3,6 trilhões.

Finanças sustentáveis no Brasil: boas intenções, belos adjetivos, pouco dinheiro

No Brasil, a ANBIMA – Relatório de Atividades de 2022 – detalha as pesquisas realizadas junto aos fundos de investimento quanto à utilização de políticas de sustentabilidade ambiental, social e de governança. Nota-se que mais de 2/3 dos fundos já incluíram a sustentabilidade em suas políticas de investimento. Todavia, com base em dados para o ano de 2021 e a classificação da Instrução CVM 555 de “Sustentabilidade/governança”, o estoque de ativos sustentáveis era modesto, de R$ 2,0 bilhões (0,02% do PIB).

Do ponto de vista regulatório, a Comissão de Valores Mobiliários publicou a Resolução CVM 175 em dezembro de 2022 que consolidou os marcos regulatórios da indústria de fundos de investimento e dispôs, de forma específica, sobre a questão das finanças sustentáveis. Seu artigo 49 indica as categorias abrangidas, ou seja, instrumentos com “…referência a fatores ambientais, sociais e de governança, tais como “ESG”, “ASG”, “ambiental”, “verde”, “social”, “sustentável” ou quaisquer outros termos correlatos.”. Enfatiza-se a importância da demonstração de que: (i) há objetivos “sustentáveis” nas políticas de investimento de fundos assim denominados; e (ii) há benefícios efetivos das tais políticas. Em janeiro de 2023, a CVM tornou pública a sua Política de Finanças Sustentáveis por meio da Portaria CVM/PTE Nº 10/2023.

O BCB incorporou o tema da sustentabilidade como um pilar de funcionamento em 2020, após um período de absorção das tendências globais desde 1995. Particular atenção é dada para os riscos financeiros derivados das mudanças climáticas sobre a higidez do sistema financeiro nacional. O BNDES e outras instituições financeiras e não financeiras estão emitindo títulos verdes e títulos ASG/ESG. Este mercado é muito concentrado nos países de alta renda, particularmente a Europa, com 80% dos US$ 290 bilhões emitidos globalmente em 2020. Entre 2015 e 2020, as emissões de organizações brasileiras avançaram, ainda que de forma incipiente, com um valor acumulado de aproximadamente US$ 10,7 bilhões.

As tendências nacionais e internacionais contribuem para delinear o escopo de desenhos alternativos de instrumentos para contribuir na potencialização da oferta de crédito no Brasil, a partir da diversificação das fontes de captação. Tal construção passa pela definição de novas fontes de receitas públicas e por alinhar os sistemas tributários com os objetivos da Agenda 2030, tema particularmente complexo desde o ponto de vista político nos contextos específicos.

Os avanços recentes no Brasil são importantes, mas ainda tímidos. Para dar maior robustez, uma alternativa seria o estabelecimento de novas políticas de crédito na utilização dos fundos públicos. O Brasil já conta com fundos especiais, como Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Nordeste (FNE) e do Norte (FNO), cujos ativos, ao término de 2022, eram de, respectivamente, R$ 44 bilhões, R$ 124 bilhões e R$ 42 bilhões. Neste estoque de R$ 210 bilhões, predomina a carteira de empréstimos que, por sua vez, são fluxos de recursos liberados ao longo dos anos. Há, ainda, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com R$ 618 bilhões em ativos, e o Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), com ativos de R$ 455 bilhões. Outros fundos específicos, como o do Clima, o Audiovisual, etc., mobilizam recursos muito menores, mas ainda assim relevantes. Os bancos públicos detinham 43% dos saldos de operações de crédito no Brasil, em julho de 2023. E os recursos direcionados, repassados por bancos públicos e privados, representam 41% daqueles saldos. Se tais fundos e bancos públicos adotassem critérios muito estritos de concessão de empréstimos com alinhamento às metas da Agenda 2030 e o que vier a lhe substituir, o potencial de enfrentamento das mudanças climáticas seria muito maior.

Como os governos incidem diretamente sobre a atuação dos bancos públicos e sobre o uso dos recursos direcionados, seria possível diferenciar prazos, custos e mesmo o acesso de financiamentos para empresas, setores, municípios, Micro e Mesorregiões de acordo com o mapeamento de impactos sobre o meio ambiente das respectivas atividades econômicas. Quanto mais negativo for este impacto, mais restritivo seria o acesso ao uso de recursos públicos.

O presidente Lula é uma liderança global respeitada, capaz de utilizar sua credibilidade e carisma para mobilizar ações em torno de causas positivas para o bem comum. Seria importante que seu governo traduzisse este mesmo poder na área ambiental doméstica. Há que se avançar com maior ousadia no redesenho de instrumentos financeiros já existentes e nas novas fronteiras de financiamento. (Original SUL 21 em 29/09/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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