O discurso de Donald Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) não surpreendeu nenhum governo, à exceção de um: o brasileiro. Durante os 56 minutos de sua fala, Trump dedicou quase dois minutos ao Brasil, um tempo significativo, ao se considerar o quão disputada é a agenda do presidente dos Estados Unidos.
Mas o mais inesperado foi a guinada de tom. Trump começou com ataques e recados duros, mas mudou de tom no meio da fala. Disse que havia se esbarrado com Lula, que se abraçaram, que tiveram “excelente química”, e acenou para um encontro em breve.
Na delegação brasileira estavam Janja, Ricardo Lewandowski, Celso Amorim e Mauro Vieira. Os dois últimos imediatamente indicaram para Lula que Trump falava dele. Na delegação dos Estados Unidos estavam Steve Witkoff (enviado especial ao Oriente Médio), Chris Wright (secretário de Energia), Scott Bessent (secretário do Tesouro), Marco Rubio (secretário de Estado) e Mike Waltz (embaixador na ONU). Marco Rubio permaneceu impassível, enquanto Mike Waltz olhou sorrindo para trás para observar a reação de Lula.
A fala de Trump foi o maior fato novo para a diplomacia brasileira desde 9 de julho, quando Trump anunciou tarifas adicionais sobre as exportações de produtos brasileiros. E tem ao menos três implicações.
Primeiro, o bolsonarismo pode perder o monopólio da agenda de Trump para o Brasil. Trump valoriza laços pessoais, e há ampla evidência sobre a importância do personalismo e das emoções em diplomacia. Isso abre espaço para que Lula construa uma ponte direta com Trump, uma alternativa aos canais hoje dominados por Eduardo Bolsonaro.
Segundo, o episódio mostra a utilidade de encontros multilaterais. Eles oferecem oportunidades de interação de alto nível, inclusive com líderes que rejeitam o multilateralismo.
Terceiro, o personalismo de Trump é ao mesmo tempo um problema e uma solução para a diplomacia brasileira. Se Lula conseguir encantar Trump, como já fez com outras lideranças dentro e fora do país, pode mudar ao menos em parte a dinâmica das relações com os Estados Unidos. Mais do que isso: pode reduzir o espaço para interferências dos Estados Unidos nas eleições de 2026.
Mas “química” não significa necessariamente uma relação duradoura. Logo no início de seu primeiro mandato, Trump descreveu a relação com Xi Jinping como marcada por uma “ótima química ”. Durante o encontro de Mar-a-Lago (abril de 2017) e a visita a Pequim (novembro de 2017), multiplicaram-se declarações cordiais. Trump afirmou que os dois tinham uma “relação muito, muito ótima”. A cordialidade, no entanto, conviveu com atritos comerciais que levaram ao início da guerra tarifária EUA-China, em 2018. Em abril de 2025, já durante o segundo mandato de Trump, China e Estados Unidos entraram em uma escalada tarifária na qual tarifas superiores a 100% foram impostas por ambos os lados, antes de reduzirem a escalada. O exemplo mostra que Trump pode gostar de um líder estrangeiro, mas a retórica de proximidade pessoal não elimina tensões estruturais.
Outro exemplo é Emmanuel Macron. Em 2017, Trump e Macron se aproximaram: um desfile no Dia da Bastilha e jantar na Torre Eiffel. Trump falou em uma amizade “unbreakable” entre eles, e entre a França e os Estados Unidos. Contudo, o bromance – e as relações entre os dois países – se deterioraram posteriormente, envolvendo questões relacionadas à agenda climática, à OTAN, e às relações com a Rússia. Aqui, novamente, o estilo performático de Trump produziu sinais de amizade no curto prazo, mas não convergência substantiva.
O caso mais notório de “química” improvável foi com Kim Jong-un. Trump disse em 2018, após a cúpula de Singapura, que “nós nos apaixonamos” por causa das cartas trocadas entre ambos. O relacionamento serviu a objetivos de curto prazo: Trump podia se apresentar como inovador na diplomacia, enquanto Kim ganhava alguma legitimidade internacional. Ainda assim, o resultado foi positivo: as relações bilaterais tiveram uma melhora significativa ao se considerar que poucos meses antes Trump e Kim Jong-un tinham feito ameaças abertas de uso de armas nucleares.
Esses casos mostram que, no estilo trumpista, a química pessoal costuma estar mais ligada à encenação e a gestos simbólicos — cartas, encontros, desfiles, jantares — do que à afinidade programática. Ainda assim, melhorias nas relações são possíveis por meio desses instrumentos.
Um exemplo mais próximo é o México. Andrés Manuel López Obrador (AMLO), presidente no período 2018-2024 e cujo mandato coincidiu com o de Trump por aproximadamente dois anos, manteve um perfil discreto em política externa, mas construiu boa relação pessoal com Trump. Isso permitiu à diplomacia mexicana atravessar o período sem grandes sobressaltos e concluir as negociações do T-MEC. Houve, no entanto, um custo: o México assumiu o papel de Estado-tampão ao conter fluxos migratórios da América Central.
Uma vantagem para o governo brasileiro é que Trump tem uma percepção menos definida sobre o Brasil em comparação a aliados históricos ou rivais, como Canadá, China e vários países europeus. Mas, se quiser sair do impasse nas relações com os Estados Unidos, o Brasil provavelmente terá de oferecer contrapartidas, tal como o governo mexicano fez. Comércio agrícola ou minerais críticos podem ser moedas de troca.
Em um encontro pessoal, há risco de ocorrer algo semelhante ao que aconteceu com Zelenskyy? A assimetria de poder pesa, mas, no caso brasileiro, a probabilidade de um encontro desastroso é menor por pelo menos dois motivos: o papel do Brasil na política externa de Trump é secundário; e o governo brasileiro pode tirar lições de episódios anteriores, como por exemplo o de evitar um encontro na Casa Branca.
Em um possível encontro, cada detalhe importa. Um encontro em terreno neutro reduziria a probabilidade de uma emboscada. A presença de tradutores – forçando pausas e dando segundos extras para refletir – faria diferença.
Ambos, Lula e Trump, também compartilham gosto por cerimônias. O showmanship é um ponto de convergência: discursos multitudinários e construção de proximidade pessoal fazem parte de seu repertório.
A mistura de banalidades e assuntos sérios também conta. Trump é notório fã de carne bem passada, enquanto Lula transformou a picanha em símbolo de prosperidade em suas campanhas. O contraste entre o churrasco brasileiro e o steak americano pode ser explorado.
A diplomacia brasileira está diante de um teste: transformar uma menção improvisada na AGNU em um canal de comunicação estruturado. Para Lula, esta é uma chance de minimizar os efeitos das políticas de Trump sobre o Brasil e ganhar mais popularidade a um ano das eleições presidenciais.
Será que ele encantará Trump? O segredo parece ser aproveitar um contexto em que afinidades pessoais podem pesar bastante. Caso consiga, terá alcançado um feito que parecia impossível há poucas semanas.
O autor agradece as sugestões de Danilo Santa Cruz Coelho.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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