Governo Lula e o financismo
A insistência do ministro da Fazenda para com a política de austeridade fiscal parece nunca ter limite. A cada nova semana, o responsável pela política econômica do terceiro mandato de Lula apresenta uma novidade em sua tentativa de fazer crer à turma do financismo a respeito de sua vocação sincera para a prática do bom mocismo. Essa ladainha vem de longe e começou ainda antes da posse do seu chefe. Ele nunca perde a oportunidade de reafirmar seu compromisso, e também do governo, com a tal da responsabilidade fiscal.

Fernando Haddad parece ter sido o principal responsável pelo convencimento do presidente quanto a não necessidade de pura e simplesmente se promover a revogação do teto de gastos. Esta excrescência, introduzida na Constituição em 2016 ainda à época de Temer e Meirelles, determinava o congelamento dos gastos primários pelo longo período de duas décadas – de 2017 a 2036. Como Lula havia prometido ao longo da campanha eleitoral que seria necessário revogar a EC nº 95, o professor do INSPER tratou de entrar em campo logo depois que os resultados do pleito foram conhecidos, sempre com a missão de evitar que a medida contrária aos interesses do sistema financeiro fosse levada em frente.

Sob o argumento da importância de se aprovar uma PEC da Transição que assegurasse ao novo governo ainda em 2023 os recursos necessários ao cumprimento de seus compromissos com as políticas públicas voltadas à maioria da população, o futuro titular da Fazenda introduziu um jabuti mui malandro na medida. Assim, por meio do disposto no art. 6º da EC 126, ficou estabelecido que o teto de gastos só seria efetivamente revogado depois que fosse sancionada uma lei complementar tratando daquilo que veio a ser conhecido como Novo Arcabouço Fiscal.

Haddad: compromisso com a austeridade

O prazo que o governo tinha para apresentar o novo dispositivo era o mês de agosto do ano passado, mas Haddad convenceu Lula a antecipar a apresentação do projeto de lei complementar ao Congresso Nacional para abril de 2023. A preocupação do ministro em assegurar sua suposta seriedade no combate aos maus resultados fiscais levou o governo a atropelar os prazos e a não promover um amplo debate de uma questão tão relevante como aquela para o conjunto da sociedade brasileira. Para elaborar o texto, Haddad ouviu apenas e tão somente as contribuições do presidente do Banco Central (BC) – Roberto Campos Neto – e de alguns poucos presidentes de bancos privados. Desta forma, o resultado foi o envio de uma proposta que praticamente trocava seis por meia dúzia. O espírito austericida do teto de gastos de Temer permanece na Lei Complementar nº 200, uma vez que se mantém no novo arcabouço a busca por resultados positivos no balanço primário das contas orçamentárias e a redução relativa das despesas públicas de uma forma geral.

Não satisfeito com tamanha propensão pelo rigor na austeridade, Haddad também convenceu seu chefe a se comprometer com o objetivo absurdo de “zerar o déficit primário” em 2024. Ora, na sequência de um exercício que havia apresentado um resultado deficitário de R$ 230 bilhões nas contas não-financeiras, parecia óbvio que tal esforço fiscal significaria uma brutal compressão das despesas de natureza social. Tal cavalo de pau nas contas públicas não fazia nenhum sentido, seja em termos políticos, seja em termos econômicos.

Afinal, todos sabíamos que o presente ano incluía as eleições municipais por todo o território nacional como agenda política fundamental. Propor medidas de contenção de gastos em um momento como esse não contaria com a boa vontade do conjunto do sistema político, independentemente da coloração partidária ou ideológica dos envolvidos. Por outro lado, em termos estritamente econômicos, a brutal reversão da orientação fiscal em poucos meses teria um efeito contracionista e impediria a retomada do programa desenvolvimentista, tal como prometido por Lula durante a campanha eleitoral. No entanto, a obsessão de Haddad em cumprir com a armadilha que ele mesmo havia imposto ao governo, tem impedido que alguma proposta de flexibilização da meta austericida seja apresentada pelo Executivo ao Legislativo.

Plano A, Plano B, Plano C: cortar, cortar e cortar

A estratégia inicial apresentada por Haddad a Lula era de que o problema seria “facilmente solucionado” por meio da elevação das receitas com o objetivo de obtenção do sacrossanto equilíbrio primário. Ora, mas qualquer analista com um mínimo de experiência com o trato de tais questões saberia que a atual composição do Congresso Nacional não estaria disposta a oferecer ao governo do PT tamanha generosidade. O esmagamento diário capitaneado pelo povo do financismo, por meio de seus articulistas nos grandes meios de comunicação, promovia uma enorme campanha contra a tal da sanha arrecadadora do Estado brasileiro. Assim, o Plano A de Haddad (aumento de receitas) não vingou. Como ele havia se comprometido até a sua medula com a meta de equilíbrio primário, as diferentes alternativas para o Plano B (corte nas despesas) passariam a ser vazadas para a grande imprensa.

A intenção era sair testando a eventual aceitação de medidas impopulares, a exemplo da retirada dos pisos constitucionais para saúde e educação. Por outro lado, os responsáveis pela área econômica desenterraram propostas de conteúdo absurdamente reacionário, como a ideia de desindexar os benefícios previdenciários em relação ao valor fixado oficialmente para o salário mínimo. Depois de muito silêncio e hesitação por parte do Palácio do Planalto, finalmente tudo indica que tais sugestões típicas da direita monetarista foram abandonadas pelo atual governo. Sobrou para Haddad se sair com os conhecidos “gastos tributários” – eufemismo bastante utilizado na linguagem do financês para tratar de benefícios, isenções e desonerações tributárias. Ocorre que existe uma enorme resistência dos diferentes setores do capital em aceitar esse tipo de medida. Ou seja, voltamos à estaca zero na estratégia de zerar o déficit primário.

Porém, para não perder a disputa de narrativa e com o intuito de deixar reafirmado seu compromisso em atender aos pleitos da Faria Lima, Haddad segue espalhando aos quatro cantos que não há hipótese de o governo recuar no quesito. Uma das novidades mais recentes foi o seu compromisso de “passar um pente fino” nos cadastros da assistência social e dos benefícios do INSS. Sim, pois certamente [sic] esse tipo de desvio residual deve ser mesmo o principal responsável pela tal da “gastança irresponsável” que compromete a possibilidade de resultado positivo nas contas orçamentárias. Além de demagógico e oportunista, tal discurso é irresponsável em termos políticos e econômicos.

Cortes em saúde, educação, aposentadoria. Qual o próximo anúncio?

A última novidade foi o vazamento de informação que o governo estaria disposto a implantar a cobrança de mensalidades nas universidades federais. Outra loucura! Mas felizmente o boato foi desmentido de forma oficial. No entanto, tendo em vista o arsenal que alguns (ir)responsáveis pelo governo haviam defendido até anteontem, quem leu a nova ameaça até achou que a medida estaria coerente com o espírito de austericídio tão em voga na área econômica da Esplanada. O que se espera, portanto, é que Lula reconheça de uma vez por todas que a estratégia de seu ministro da Fazenda estava equivocada desde o início. O governo precisa, de forma urgente, anunciar seu recuo na meta de zerar o déficit primário.

Temos menos de seis meses para que sejam encerradas as contas de 2024. A teimosia em manter uma intenção inexequível, sem que seja promovida ainda mais compressão pelo lado das despesas de natureza social e de investimentos públicos, pode comprometer ainda mais a capacidade de Lula terminar bem seu mandato. A estratégia de Haddad é mudar o foco do debate do momento atual para o futuro. Assim, propôs uma alteração na meta incialmente prevista para 2025. Ao perceber a impossibilidade de gerar superávit primário no ano que vem, tal como havia prometido, ele recua para igualmente a meta de “zerar o déficit” no próximo exercício.

Como foi metralhado pelos financistas por tal “derrapada irresponsável”, ele mesmo anuncia, de forma desnecessariamente antecipada, um corte de R$ 25 bi no orçamento do ano que vem. Na verdade, trata-se tão somente de palavras ao vento, de mais uma declaração de intenções, mas que pode custar muito, em termos políticos e de concessões ao fisiologismo no legislativo, ao governo no caso de haver a necessidade de um recuo lá na frente. Aliás, exatamente como ocorreu quando Haddad se comprometeu de forma irresponsável com a atual meta de zerar o déficit no ano presente.

Lula precisa assumir o comando da política econômica

A decisão de Lula em manter o apoio a todas estas medidas de natureza neoliberal e de inspiração austericida de seu ministro da Fazenda tem feito muito mal ao Brasil e tem apresentado uma elevada fatura política e eleitoral ao governo. Já é passada a hora de o presidente abandonar a imagem dos ensinamentos de economia que ele teria aprendido com Dona Lindu, sua falecida mãe. Ao contrário das famílias e dos indivíduos, o setor público não precisa – e nem deve – se guiar pela máxima difundida pelo financismo de que não se pode gastar mais do que arrecada, em termos estritos. O Estado conta com instrumentos de política econômica (capacidade de tributação, monopólio das operações cambiais, possibilidade de lançamento de títulos da dívida pública, operações com as reservas internacionais, etc) e com a soberania monetária, atributos esses de que não dispõem as pessoas, famílias ou empresas.

Manter de forma teimosa a meta de obter equilíbrio fiscal primário é um grande equívoco. Ainda mais pelo fato de ocultar de forma maldosa e maliciosa a existência de mais de R$ 770 bi pagos ao longo dos últimos 12 meses a título de despesas financeiras, como pagamento de juros da dívida pública. Lula precisa decidir e anunciar, de uma vez por todas, qual é a verdadeira prioridade de seu governo.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli 
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