Lula III é um governo bom, com respeito internacional e boas políticas públicas. Necessitamos transformá-lo em um governo popular

Avaliar governos sempre é uma tarefa difícil, porque governos são, em sua grande maioria, complexos, contêm em si inevitáveis contradições. Isto posto, meu propósito é pensar o governo Lula III a partir de três perspectivas: a política externa; a forma de governar no campo do jogo político propriamente dito e a forma de governar na relação com a população brasileira.

No que concerne ao primeiro ponto, a política externa, o governo Lula III entrou com o pé direito, por várias razões. A primeira delas foi porque, no governo do militar reformado, o ministro das relações exteriores se jactava de o Brasil querer se tornar um pária. Nesse período, o país praticamente deixou de existir no mundo da política internacional. Quando Lula passa a afirmar que “o Brasil voltou”, desde suas primeiras manifestações como presidente nos fóruns internacionais, não havia nenhuma metáfora, realmente o Brasil estava voltando.

A segunda razão decorreu de trazer para a linha de frente a diplomacia brasileira, representada por seus mais qualificados embaixadores. O Itamaraty sempre ocupou um papel importante e independente no país, mesmo durante a ditadura militar. No governo do ex-tenente, o Itamaraty se desmoralizou a ponto de ele tentar nomear seu filho como embaixador do Brasil nos Estados Unidos sob a principal justificativa de que era fluente em inglês, já que vendera hambúrguer, durante um tempo, naquele país.

A terceira razão é a própria figura de Lula, um estadista respeitado na grande maioria dos países do mundo. Sua presença, em qualquer reunião internacional, muda a qualidade do encontro. Mesmo antes de ter sido presidente pela primeira vez, Lula já havia sido recebido, como líder sindical e fundador do PT, por grandes líderes mundiais. Já o ex-militar, durante sua presidência, em encontros internacionais, ficava tentando conversar com os garçons (o Brasil tem uma dívida com eles), já que ninguém o reconhecia.

Por fim, mas não menos importante, o Brasil, tanto pela manifestação da presidência quanto de seu corpo de ministros, tem colocado na ONU e nos demais fóruns internacionais posições inovadoras, fortes e muito razoáveis sobre os grandes conflitos internacionais, especialmente quando se manifesta contra a fome que grassa, principalmente, no continente Africano.

Se, no plano internacional, o governo vai muito bem, sua vida internamente não tem sido das mais fáceis. No plano da política stricto sensu, poderia examinar muitos aspectos, mas vou me deter em dois: as políticas públicas que começam a ser levadas a efeito e o funcionamento do governo que se autodenominou de frente ampla.

Muito do que foi paralisado ou desmontado está se recuperando e novas políticas públicas nas áreas do combate à fome e à miséria, da habitação, da educação, da saúde, da segurança, da ciência e tecnologia, do meio ambiente, da cultura, começam a se delinear.  O Governo Lula III funciona. Mesmo com políticas capengas como as da área da educação e da segurança, não há dúvida de que existe um governo que busca resolver alguns problemas que requerem políticas emergenciais. As questões econômicas parecem bem equacionadas, o desemprego diminui. Há o que comemorar.

Mas nem tudo são flores no governo Lula III, há também a questão do funcionamento do chamado governo de frente ampla. Neste sentido, existe uma grande confusão entre três noções: unir forças, ceder às forças ou estar cômodo na posição em que se encontra. Seria ingenuidade pensar que o PT ganhou as eleições e então pode governar sozinho, mas é igualmente ingênuo pensar que, quanto mais à direita, quanto mais conservador for o governo, mais apoio terá dos que vendem votos.

Há um sério engano nesta noção de frente ampla. Ela significa, creio que corretamente, o grupo que se reuniu em torno da candidatura Lula em prol da governabilidade, e talvez os dois personagens mais ilustrativos desta atitude sejam o atual vice-presidente Geraldo Alckmin e a ministra do Planejamento Simone Tebet. Mas por que chamar esse bando de deputados federais completamente descompromissados com o bem público, que cultivam interesses pessoais dos mais mesquinhos e muitas vezes pouco éticos, para dizer o mínimo, de companheiros da frente ampla?

Esta massa disforme de deputados, comandados por lideranças de dentro e de fora do Congresso Nacional, tem um interesse principal: recursos para seus estados, para seus cabos eleitorais, quando não para pessoas muito próximas de si, o que poderia ser chamado de “meu outro eu”. Agem por moto próprio, ou a mando de seus capi, como sequestradores: quanto mais a família entrega, mais é pedido para devolver o sequestrado.

O governo Lula III, em relação a esta turba, faz muito mais do que deveria. E aí está um governo velho, sem inspiração, sem capacidade de enfrentamento. Ilusão infantil achar que, sendo cada vez mais de direita, mais vai conquistar corações e mentes destes grupos nos legislativos. Mas – diria o/a leitor/a – se não fizer isto, o governo paralisa! Perdão, mas não concordo. Primeiro porque, por mais que grite contra as pautas das mulheres, por mais santos que Flavio Dino coloque atrás de si antes de dar entrevista, por mais que digam que são contra o aborto, sempre serão considerados como um bando de ateus comunistas.

Isto é uma grande e cínica retórica e, se não for entendida como tal, não teremos um governo de centro-esquerda. A direita e a extrema direita querem recursos, as famosas emendas. E isto é o que Lula III tem de entregar, mas não precisa se tornar parecido com eles para fazer isto.  Para enfrentar a direita e a extrema direita, não precisamos de uma direita mais palatável, precisamos de uma esquerda. Se todo mundo disser que é contra o aborto, cada vez mais os eleitores serão contra o aborto, porque o criminalizam; se todo o mundo for contra a legalização das drogas, os eleitores também serão. E, quando forem votar, por óbvio, não votarão nos “comunistas ateus”, mas nos que “defendem a lei, a família e religiões de naturezas diversas”.

Recriar uma esquerda contemporânea e corajosa é fundamental, mesmo num governo de frente ampla. É no mínimo estranho que a frente ampla, constituída em torno de um presidente do PT, seja tão conservadora a ponto de ser difícil identificar a esquerda dentro dela.

Finalmente, é também necessário falar de um aspecto completamente esquecido pelo governo Lula III: a relação do governo com a população, com as organizações da sociedade civil, com os moradores dos municípios, das comunidades, com os grupos organizados. Aos que acompanham diuturnamente o governo Lula III, ele parece absolutamente elitista. Lula circula em Brasília e pelo mundo rodeado de vetustos senhores brancos, engravatados, que juram ser contra o aborto, as drogas e profundamente religiosos.

Onde estão as mulheres, onde estão os negros, onde estão os indígenas, onde estão os pobres, onde está a população lgbtqia+, onde estão as pessoas especiais? Onde estão as políticas públicas que revolucionem o escandaloso ensino público fundamental e médio?  Por que Lula III não anda pelo Brasil? Por que não visita as escolas? Por que não vai às comunidades? Por que não fala com o povo?

É uma situação nefasta a que vivemos. Temos um governo que, mesmo com todas as suas limitações, governa voltado para as populações mais vulneráveis com políticas públicas acertadas, mas se comporta como se fosse uma elite, distante do povo. Este é acolhido pela extrema direita com um discurso irracional, religioso, assustador, profundamente desrespeitoso com a política. E a esquerda? Ora, a esquerda! Tem medo de ser acusada de destruir a família margarina, religiosa, antiaborto, antidrogas, branca e heterossexual. Aos jovens, não promete uma escola de alta qualidade, que tenha instrumentos para impedir a evasão através de políticas públicas que garantam seu sustento durante os estudos, mas  sim, com bolsas absurdas, promovidas por organizações privadas enquistadas dentro do MEC, para que, ao concluir o ensino médio, tenham recurso para serem empreendedores de carrinhos de pipoca.

Enfim, temos um governo bom, com respeito internacional e boas políticas públicas. Necessitamos transformá-lo em um governo popular e com lastro na esquerda. Se não, terá sido só um intervalo entre dois atos de uma tragédia conhecida. (Publicado no Sul 21, 01/12/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone

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