Lula tem razão
Ladislaw Dowbor, em interessante artigo, “Rentismo, o novo modo de produção”, no site Outras Palavras, apresenta uma tese muito instigante. Não seria mais Capitalismo, “trata-se de outro modo de produção em construção, em que a financeirização supera a acumulação produtiva de capital, a exploração por meio do rentismo supera a exploração por meio de baixos salários.” Com isso, o conceito de emprego se desloca, a mais valia é apropriada através de algoritmos e o próprio dinheiro eletrônico. Diz, “enquanto o capitalismo industrial gerava ao mesmo tempo a apropriação e geração de mais capacidades produtivas, o rentismo se apropria do excedente sem a contribuição produtiva correspondente.“ Em outras palavras, não gera emprego suficiente e é altamente excludente. Isso eleva a escala de apropriação, enquanto 1,2% da população adulta detêm 47,8% da riqueza acumulada, 53,2% vivem em condições precárias e, eu diria, não são mais necessários para a reprodução ampliada do capital.
Não significa que o setor produtivo, indústria, agricultura, entre outros, desaparecerão, ao contrário. Mas o que se observa é que mesmo esses segmentos se submetem à lógica do setor imaterial, a valorização de seu capital se dará pelos algoritmos e esquemas que a financeirização engendrou. Em outras palavras, o real terá que se submeter à lógica de valorização dos papéis e sinais digitais.
Nesse mundo, o conhecimento passa a ser a força produtiva que provoca as mudanças, que define a lógica da nova economia. Mas, um conhecimento específico, do digitalizado, do valorizar o imaterial. Traz uma contradição. Se o valor das mercadorias, materiais ou imateriais, é definido pelo conhecimento, o trabalho social passa a ter um papel secundário, o intangível, os sinais magnéticos, prescindem à territorialidade, exige uma nova forma de organização social.
A busca do monopólio desse conhecimento, do cerceamento da participação coletiva, faz com que se aproximem rentismo e grandes corporações, faz com que o domínio dos algoritmos e o impedimento de sua difusão para uso comum deem poder e riqueza aos seus detentores e desenvolvedores, uma parcela insignificante da população mundial.
A economia mundial está na era digital, no entanto, regulamentada por normas e procedimentos da era do capitalismo produtivo, o que gera uma impotência institucional, e há uma total desarticulação do sistema, com alta concentração de renda e poder nas Big Techs e nos poucos que dominam esse conhecimento específico e sua infraestrutura tecnológica.
Desafios ambientais, desigualdade, pobreza, sofrimento humano, são notados como sinais de nossos tempos, notados como resultados de um mundo em que não há regulação adequada, nem propósitos sociais. A anarquia da produção em que interesses de grupos, individualizados e contraditórios entre si, se opõem aos da coletividade, em que a visão social é desqualificada, faz com que a sociedade se mostre à deriva. Neste quadro, apenas um agente pode resgatar a visão humanitária, o Estado. Ele é o último guardião para regular e defender os interesses da sociedade, do cidadão comum. É preciso intervir, inclusive para garantir empregos de melhor qualidade.
A que vem essa conversa? Estamos num momento de crise mundial, de crise de investimentos, a nível mundial. Nota-se um decréscimo de investimento externo direto geral, e é função dos governos garantirem condições para que haja maior inserção social, mais dignidade, atraindo esses investimentos.
Um país como o Brasil vem de época difícil, anos em que se refluiu, em que o desemprego chegou a níveis alarmantes. Infelizmente a busca de recuperar a dignidade social e diminuir os níveis de concentração de renda e de exclusão não é fácil. Enfrentar um Congresso conservador e ideologizado, que pouco pensa nesse processo de recuperação, é difícil. Mais, ter ainda estruturas partidarizadas que se posicionam contra um projeto desenvolvimentista, pior ainda.
Pior, contar com um Banco Central que não colabora, que tem em sua presidência um cidadão que veste camisa verde amarela em eleição, panfletariamente à época, simbolizando ser de extrema direita, que vai a jantar em sua homenagem com governador nitidamente candidato ao Planalto, jantar em que ele próprio se declara candidato a um ministério num improvável governo de oposição ao atual, não pode ser considerado técnico. Vejo com muita desconfiança as alegações da mídia e dos artigos de economistas ortodoxos de que há razões técnicas para manter a taxa de juros em nível escorchante.
Falso, vendo pelo lado da teoria econômica mais tradicional, aquela que eles seguem. Observa-se que a inflação está controlada, o nível de demanda agregada não explodiu, as contas externas apresentam bom resultado, o emprego melhorou, o país recuperou a credibilidade internacional. Não há nenhuma justificativa técnica plausível, a não ser a visão ideológica e partidária assumidamente contrária ao projeto desenvolvimentista. Atitude que baseia o posicionamento para manter os lucros exacerbados que só interessam aos setores rentistas.
Vejam, por exemplo, os investimentos externos diretos, mesmo em época de forte retração internacional. No ano passado, o Brasil se manteve em terceiro lugar de atração, logo depois de Estados Unidos e China. Não foi fácil, mais difícil ainda manter com as taxas de juros que estão sendo sustentadas. Há uma disputa internacional e isso nos desfavorece muito. Com essas taxas de juros, perdem-se investimentos produtivos, o que significa menos empregos qualificados, manutenção de uma base produtiva com produtividade e competitividade menores. Será que isso não passa pela cabeça dos senhores do BC?
Com certeza, a incerteza econômica e as taxas de juros altas afetam o investimento global, diminuem nossa atratividade. Lula fez muito bem em criticar essa sandice, de mostrar que o que estão fazendo é jogar contra os interesses da população brasileira.
Não se submeter aos interesses dos rentistas e da direita raivosa que parecem ser os motores das decisões tresloucadas daqueles que não têm compromisso com a melhoria de vida da maioria no Brasil é uma forma objetiva de deixar claros os interesses envolvidos. Colocar panos mornos para evitar conflitos em nada ajuda neste momento. Sendo ideológico, deve ser enfrentado de frente, mostrando claramente as repercussões das atitudes equivocadas que têm sido assumidas.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Cortar, arrochar, cortar, arrochar!“, de Paulo Kliass.
Sobre o assunto, aproveite para conhecer “Resgatar a função social da economia” de Ladislau Dowbor.