Calle Chile 371, esquina com Calle Defensa, cidade de Buenos Aires, residência por anos de Joaquin Salvador Lavado, cartunista mais conhecido como Quino, criador de Mafalda. O endereço é hoje um local de peregrinação à pequena estátua de Mafalda sentada em um banco, uma iniciativa de um vizinho do prédio. Quando da inauguração em 2009, momento de cristalização de um mito – comparável ao de Che Guevara, eternamente jovem, Quino se lamentou: “me impressiona deixá-la assim, sozinha”. Em 2014, por ocasião do 50º aniversário da tirinha, Mafalda ganhou a companhia de Manolito e Susanita também por iniciativa de vizinhos portenhos. Talvez a escolha tenha sido deliberada, pois está fundada em uma visão de possível entendimento entre frações multifacetadas da classe média na fase pré-radicalização da sociedade argentina.
Mafalda , a menina intelectualizada, filha de um corretor e de uma dona de casa, questiona instituições, problematiza a família burguesa tradicional, denuncia injustiças, odeia sopa, passa a ter a companhia de amigos: Manolito, filho de um pequeno comerciante de bairro, ambicioso, que adora o ruído do tilintar da máquina registradora, seduzido pelos negócios, mau aluno (menos na matemática) e de Susanita, a matrona-menina, a “señora gorda”, convencional, conservadora, egoísta, racista, que odeia pobres, e cujo mundo ideal se restringe aos cuidados do lar, aos muros do casamento e filhos, muitos filhos. Outros personagens como Filipe e Miguelito criam com suas inquietações e perplexidades, uma espécie de medida que ressalta esse trio,
Mas o centro das atenções é Mafalda. Crianças que se dirigem à escola a cumprimentam, famílias e turistas peregrinos a visitam e se deixam fotografar sentados ao lado de Mafaldita. Quase um ato litúrgico. Esboçam um diálogo, a acariciam. Atos que contêm para os mais velhos algo de nostalgia. Para os mais jovens, um aprendizado de emancipação, para além do gozo meramente consumista de imagens. Mafalda desde 2007 é distribuída por determinação do Ministério de Educação e Cultura nas escolas como parte de cem obras de destaque da literatura argentina.
A morte recente de Quino, aos 88 anos em Mendonza, sua cidade natal, provocou uma avalanche de reproduções de suas tirinhas nas redes sociais e de fotografias de admiradores junto à estátua. Lamentou-se a sua morte, condolências foram dirigidas à Mafalda que se despede comovidamente de seu criador e aqui permanece, como destacou tirinha publicada nos jornais – apesar dela e seus amigos terem se despedido publicamente em 1973. Mafalda ressurgiu esporadicamente nos anos seguintes em campanhas em defesa da infância e dos direitos humanos.
As historietas de Mafalda foram publicadas entre 1964 e 1973 e estão inscritas até certo ponto na indústria cultural, sem se submeter às regras de reprodução em série. Quino produziu duas mil tirinhas nesse período e dispensava ajudantes. Publicou em Primera Plana, El Mundo e Siete Dias Illustrados. O autor, em entrevista à Página 12 dizia que Mafalda “é filha de sua época. Da época dos Beatles, de Che Guevara, da descolonização da África.” O mundo de Mafalda, a representação de uma classe média progressista, ocupa um espaço intermediário entre a radicalização de setores da esquerda no enfrentamento à ditadura oligárquica argentina e ao terrorismo de Estado, inaugurado pelo general Ongania em 1966 e aprofundado com o golpe de 1976, após o conturbado retorno de Perón do exílio em 1973. Nesse período nasce Guillen (1968), irmão de Mafalda e Libertad (1970) que simbolizam as novas gerações iracundas. Guille mal sabe falar com um ano e meio e pergunta a razão de tudo ao ponto de Mafalda considerá-lo desde já “um forte candidato aos gases lacrimogêneos.”
Mafalda ao conhecer Libertad na praia: “Como és pequenina. Como te chamas?”. A resposta é certeira: “Libertad. E já sacaste tua conclusão estúpida? Todo mundo tira sua conclusão estúpida quando me conhece”. Filha de pais progressistas, Libertad é a única personagem cuja mãe trabalha fora, motivo de admiração de Mafalda. Das personagens é a mais radical e terceiromundista. É desse período uma das tirinhas mais famosas. Mafalda pergunta a um policial se o cassetete é um apagador de ideologias.
As personagens de Quino se despediram dos leitores nas mesmas páginas nas quais se noticiou “o massacre de Ezeiza” – o desembarque dramático de Perón na Argentina, depois de 18 anos no exílio, quando se confrontaram setores direitistas do peronismo, forças de segurança estatal e a juventude peronista à esquerda e seu grupo mais expressivo, os Montoneros. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos e o que fraturou o peronismo.
A morte de Perón em 1974, a absoluta instabilidade do governo de Isabelita Perón, sua esposa, a ascendência de Lopez Rega, a brutalidade assassina da Aliança Anticomunista Argentina elevaram o patamar de repressão que redundou no golpe militar de 1976. Não há lugar para Quino, que já se negara a ceder Mafalda aos interesses de Lopez Rega. Quino exilou-se por alguns anos na Itália. Paradoxalmente, Mafalda não foi censurada nos anos de ditadura, em que pese seus editores serem perseguidos e exilados. Segundo Quino, as tirinhas eram vistas como uma arte menor, mais um entretenimento e por isso, Mafalda teria sido poupada. Nesses pontos cegos se preservou uma forma de sensibilidade emancipacionista que transbordou os limites do autoritarismo. As Ediciones de la Flor eram item certo de compras pelos brasileiros progressistas em Montevideo e Buenos Aires, e disputadíssimas no Brasil até 1981 quando se passaram a ser publicadas por aqui.
Ao longo de 50 anos Mafalda não só sobreviveu como teve êxito crescente. Hoje está presente em mais de 30 países, inclusive China e Indonésia. Isso se deve não apenas às condições técnicas de reprodução e circulação, mas ao fato de as tirinhas estarem impregnadas de conteúdo que ultrapassam o conjuntural e permitirem a ressignificação de temas em diferentes contextos: a desigualdade social, a redefinição das relações de gênero, a denúncia do racismo, os limites da democracia liberal e a ecologia.
Nas páginas de Mafalda encontrou-se inspiração ao combate às ditaduras militares na América Latina que sobreviveram até os anos 80, ao combate ao neoliberalismo (pioneiro sob formas ditatoriais no Chile e Argentina), à denúncia do machismo e do patriarcalismo, à defesa das reformas e políticas emancipacionistas nos anos 10 do século XXI, que tanto atemorizam as oligarquias. Seu espírito está presente nas manifestações feministas na América Latina, em bottons, cartazes, camisetas, calendários que a cada página virada evocam a possibilidade de um mundo tolerante e mais justo. Indomável apesar de tentativas de apropriação.
As jovens feministas chilenas deram um passo além. Netas de Mafalda, filhas de Libertad enfrentaram a fúria policial, misógina desde sempre, algumas foram mortas, outras perderam a visão atingidas propositalmente por balas de borracha, muitas sofreram abuso sexual. Resguardam algo da ternura crítica de Mafalda e muito da justa ira e ironia feroz da pequenina Libertad tão bem representada na canção performática “El violador eres tú” do Coletivo La Tesis, que se tornou hino feminista mundo afora. O ímpeto do movimento feminista chileno resultou na aceitação de que haverá representação política paritária de gênero no processo constituinte.
Na Bolívia as eleições, que varreram os golpistas, confirmaram a valorização das mulheres de base popular e dos povos indígenas na representação do Parlamento, garantida pela paridade e alternância das mulheres nas listas de candidaturas dos partidos. O protagonismo feminino tem caminhos variados na América Latina e parecem confirmar o aprofundamento possível na periferia, em que pese os altos e baixos, da revolução social apontada por Eric Hobsbawn, tendo como um dos eixos fundamentais a emancipação e participação feminina. Algo que se espraia. Nada mais comovente em ver meninas de Cuzco, na saída da escola, em coro a cantar “El violador eres tú”!
A peregrinação à Calle Chile 371 continuará enquanto persistirem as causas da bárbárie presente, agora em escala planetária, tanto quanto se busca forças na história dos derrotados nesse continente, que pretendem devastar. Mafalda (e Libertad) mobiliza emoções e sentimentos, projetos, ideias que convivem com a noção de que algo se perdeu ou sofre risco iminente de perda, mas pode e deve ser recuperado sem se entregar ao fatalismo do presente, cômodo aos céticos da hora. Se a melancolia, em sua peculiar passividade, traduz um sentimento de perda e contém a crítica do acontecido, a nostalgia possui a potencialidade de superar o presentismo sufocante. A nostalgia mobiliza o passado em nome do futuro, para além de Susanitas incorporadas em figuras perversas como Damares ou de Manolitos incorporados na fúria privatista de Guedes. Para além da violência neofascista bolsonarista que tudo procura devorar.