Achou que fosse morrer. Achou que todos fôssemos morrer. Resolveu blindar a casa. Mônica quarentenou-se por meses. Compras por aplicativo, deixadas na porta do prédio e recolhidas em uma operação digna de guerra química. Máscara, face-shield, roupas compridas, botas, touca, óculos e um macacão acetinado por cima de tudo isso. Tudo desinfetado com álcool, lavado do jeito que desse para lavar e relavar. Nada na casa escapava à higienização. Nem mesmo as paredes.

Seu marido achava exagero, mas não discutia. Ficou chateado quando o gato não pôde mais voltar depois de uma escapulida do apartamento. Portas e janelas foram fechadas. Foram quase três dias ouvindo miados. Resolveu sair e pegar o gato. Pegou e não voltou.

Mônica não reagiu. Preferia que ficassem longe. Por medo. Por raiva. Por coisas que nem sabia que nome tinham. Não amava o gato e nem o marido. Talvez, nem tivesse amado um dia. Mônica não sabe de amor o suficiente para saber se ama ou amou. Conhece apenas o medo. E este, agora, lhe é maior que qualquer outro sentimento que possa existir.

No tédio sanitário, entregou-se a vídeos no YouTube. De todos os tipos. Até eróticos. Dos mais pesados e incomuns. Debates e monólogos políticos, às vezes tão eróticos e pesados quanto os pornôs. Preferia aqueles em que gente mais ofende que explica. Evitou qualquer coisa que pudesse contaminar seu corpo, mas entregou-se sem limites à contaminação de seu espírito com toda podridão que espíritos odiosos e ressentidos são capazes de transmitir pelas redes.

Estava ali sua liberdade. Na transgressão solitária de sua audiência ao censurável. Evitava toda sujeira por fora, mas queria mais e mais imundície por dentro. Toda que pudesse consumir em pensamentos confusos e tristes.

Assustou-se com uma barata na cozinha. Com fúria, despejou sobre o inseto toda uma lata de inseticida. Depois, veio o pânico. Como entrou? Os ralos! Havia esquecido de tampar os ralos! Este tempo todo, os ralos!

Sentiu uma raiva imensa. Por si mesma. Pela pandemia. Pela quarentena. Pela casa esterilizada. Pelo seu corpo desinfetado. Pela gente aglomerada do lado de fora. Pela política. Pela pornografia. Pelos malditos ralos! Quebrou o que pôde em casa.

Abriu a porta com a fúria de quem a arromba e saiu sem saber para onde. Queria gente. Queria deitar na areia. Sentir o gosto da terra. Sentir gente. Sentir o gosto de gente.

Um sujeito, por educação, alertou-lhe sobre a máscara. Pensou que ela a tivesse esquecido. Encarou de um jeito que o paralisou. Segurou-lhe a cabeça com força e o beijou com tesão. Depois de desgrudar as línguas e afastar os lábios num estalo, lambeu-lhe o pescoço e foi embora.

Decidiu que se aglomeraria. Para o deleite dos perversos. Sem máscara. Sem vacina. Sem Cloroquina. Sem Ivermectina. Sem vergonha. Sem pudor. Pularia o carnaval clandestino que encontrasse. Não queria mais saber de saúde e doença, direita ou esquerda, matar ou morrer. E que buscaria o êxtase prometido em tanto riso, tanta alegria e nos mais de mil palhaços no salão.

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