Além da África do Sul, três outras eleições concluídas recentemente apimentam o cenário internacional neste momento. Hoje, tratarei dos processos eleitorais na Índia e no México, e em próximo artigo, falarei da União Europeia. Todos são membros do G20, capazes de influenciar a reunião do G20, que neste ano de 2024 acontece no Brasil. A Índia, além disso, também é membro dos BRICS.

Na Índia, as eleições apresentaram um resultado previsível, e uma surpresa. As eleições naquele país se desenvolvem ao longo de seis semanas, são bem longas, proporcionais aos mais de 640 milhões de eleitores. Como resultado (as apurações ainda estão em curso), devem confirmar a vitória do atual primeiro-ministro Narendra Modi, e seu Partido do Povo Indiano (Bharatyia Janata Party). Assim, ele irá para o seu terceiro mandato, o que não acontecia desde a independência da Índia, com a figura de Nehru, um dos heróis do processo de independência, parceiro de Ghandi nessa empreitada. Essa é a parte previsível do processo eleitoral indiano.

A parte não prevista é que, ao contrário do que se esperava ao longo do processo (uma expressiva vitória e uma maioria qualificada congressual de apenas um partido, inclusive com maioria suficiente para alterar a Constituição), as eleições apresentaram um quadro muito mais disputado, obrigando o Partido do Povo Indiano a fazer alianças com partidos pendulares (que podem mudar de lado) para lhe dar maioria, e o crescimento não apenas do maior partido de oposição, o Partido do Congresso, como de vários importantes partidos regionais da coalizão oposicionista que foi formada, a INDIA (Indian National Developmental Inclusive Alliance, Aliança Nacional Indiana para o Desenvolvimento Inclusivo em uma tradução livre).

O primeiro-ministro Modi baseou sua campanha no ambiente de crescimento econômico (a economia da Índia vem crescendo velozmente, a taxas superiores a 6% ao ano, e desponta como uma das cinco maiores economias do mundo), mas também em um forte discurso de nacionalismo hindu, com complicadas consequências religiosas. O tal nacionalismo hindu não tem relação apenas com a noção de nação e conservadorismo político, ele tem um forte componente de conservadorismo religioso, algo como a defesa da Índia para os hindus, excluindo ou reduzindo a noção de cidadania de outros grupos religiosos, especialmente a minoria muçulmana (que representa mais de 200 milhões de habitantes).

Também implica alterar a Constituição, no sentido de validar juridicamente algumas regras religiosas hindus (como o não-consumo de carne animal, talvez a mais emblemática delas) ou uma certa aceitação do sistema de castas (em especial, a separação dos dalits, os chamados intocáveis, a casta mais excluída e que, por isso mesmo, tem vários mecanismos previstos em lei para promover a sua inclusão, que por uma visão estritamente “religiosa” hindu não deveriam necessariamente ter vigência, uma vez que a tal exclusão tem motivações religiosas). Assim, a campanha de Modi assumiu uma conotação fortemente religiosa, utilizando a cor açafrão da religião hindu, embalada pelo deus Rama e sua popularidade (o hinduísmo é politeísta), e por um discurso anti muçulmano radicalizado.

O encolhimento do partido de Modi, e sua dependência de partidos regionais para poder governar (já no processo eleitoral coligados na Aliança Democrática Nacional), além de não ter conseguido maioria qualificada no sentido de alterar a Constituição indiana para torná-la mais próxima dos desejos dos nacionalistas hindus, frustra dessa forma seus planos de que essa política de combinar crescimento econômico com nacionalismo hindu se perpetuasse por muitos anos. Além disso, apesar da Índia ser membro dos BRICS e um grande importador de derivados de petróleo da Rússia, Modi se colocou como um possível parceiro na região dos interesses dos EUA, tendo inclusive se juntado aos EUA, Austrália e Japão na chamada iniciativa “Quad” (de quadrilátero), uma aliança naval para fazer frente à China na área do Índico e do Pacífico.

Por outro lado, apesar do crescimento do Partido do Congresso na oposição, vários partidos cresceram no interior da coalizão INDIA, com enorme diferenciação regional. Aí se incluem partidos de esquerda (como o Partido Socialista, no estado de Uttar Pradesh, o mais populoso do país, que agora se tornou o segundo maior partido da oposição no Congresso da Índia, só superado pelo tradicional Partido do Congresso) ou regionais (como o Trinamool Congress, o Congresso das Bases de Toda a Índia, com forte inserção e o governo regional em Bengala Ocidental). Assim, enquanto for para fazer oposição a Modi, a coalizão funcionará bem, mas talvez seja mais difícil se e quando for o caso de tentar formar um governo, dadas as diferenciações geográficas e religiosas, pois existem agrupamentos conservadores religiosos no interior da coalizão que, por uma questão de sobrevivência face ao discurso ultra-hinduísta de Modi, se abrigaram ali, inclusive partidos muçulmanos. A vida da oposição também poderá não ser fácil. E as tensões podem crescer na Índia.

Assim, esse parceiro do Brasil nos BRICS e no G20 seguirá em disputa política nos próximos anos, com alguns analistas avaliando que o ápice eleitoral de Modi já foi atingido, e que os próximos anos serão de declínio. A ver, mas seguramente não serão de tranquilidade política interna.

Por outro lado, no México, as eleições mostraram um vigor impressionante do MORENA (Movimento de Regeneração Nacional), o partido de centro-esquerda fundado e liderado pelo atual presidente Andrés Manuel López Obrador, conhecido no México pela sigla AMLO. O MORENA, uma divisão do anterior Partido da Revolução Democrática (PRD), por sua vez uma cisão do anterior Partido da Revolucionário Institucional (PRI), na sua sigla, alude ainda a uma forte referência religiosa mexicana, a Virgem de Guadalupe (o equivalente mexicano da Nossa Senhora de Aparecida, padroeira nacional), já que esta é carinhosamente reverenciada pelos mexicanos como “La Morena”. Essas eleições se deram no último dia 2 de junho, e o resultado foi uma expressiva vitória da candidata do MORENA, a física Claudia Sheinbaum, ex-prefeita da Cidade do México, por cerca de 60% dos votos, contra menos de 28% da segunda colocada Xochitl Gálvez (do tradicional partido conservador Partido de Ação Nacional, PAN, em coligação com os antigos rivais PRI e PRD). A vitória e as alianças congressuais possíveis já conformadas na aliança eleitoral com o Partido Ecologista Verde do México e o Partido do Trabalho garantirão maioria qualificada na Câmara de Deputados, com dúvida se ainda será conseguida essa maioria qualificada no Senado, embora a maioria já esteja garantida.

Assim, o novo governo deve conseguir administrar com tranquilidade política e, inclusive, talvez com capacidade de aprovar reformas que exijam maioria qualificada, a depender do resultado final do Senado.

Apesar da vitória expressiva, existem duas fortes dúvidas. Uma em relação à política externa, em especial em caso da vitória de Trump nas eleições do final do ano nos EUA: como o novo governo vai se relacionar com seu complicado vizinho do norte. Seguirá uma política de aproximação com os EUA (em especial na economia, viabilizada pela reinstalação de plantas de empresas estadunidenses que estavam produzindo na China de volta ao México) ou buscará um processo de maior integração regional com os demais países latino-americanos como, ao menos no discurso, seria a preferência de AMLO?

A outra dúvida é em relação à estrutura produtiva mexicana, tradicionalmente sustentada pela indústria do petróleo e a petroquímica. AMLO tentou fazer crescer de novo essas indústrias tradicionais, em decadência, mas a nova presidente vem de uma visão menos tradicional e com preocupações ambientais. Tentará caminhar na reestruturação industrial e na transição energética? Como conciliar isso do ponto de vista da atual estrutura econômica existente, e também politicamente com seu padrinho político, um tradicionalista do ponto de vista da produção mexicana?

Finalmente, queria aproveitar esse espaço para fazer uma homenagem. No último sábado faleceu a economista e professora Maria da Conceição Tavares, aos 94 anos. Conceição foi mestra de muitas gerações de economistas. Apesar de eu ter estudado na UFRJ e na Unicamp, duas escolas de Economia onde ela foi talvez uma das mais importantes referências, e apesar de ela estar ativa no período, não tive aulas diretamente com ela, mas com professores que foram formados por ela. Convivi com ela ainda ao longo de minha vida profissional e política, e por fim foi minha vizinha de bairro aqui em Laranjeiras por um tempo. Uma figura ímpar, uma intelectual profunda e produtiva, de uma intuição gigantesca sobre o funcionamento da economia brasileira, uma referência fundamental para a discussão no Brasil e na América Latina, uma convivência inesquecível, embora não frequente, com esse fio eternamente desencapado do universo dos economistas brasileiros.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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