Aos 80 anos, morreu na madrugada do domingo (6/12) em Montevidéu, o ex-presidente do Uruguai Tabaré Vazquez. Ele tinha 80 anos e lutava contra o câncer no pulmão que havia identificado no início do ano. Ele foi o primeiro líder de esquerda a ser eleito no Uruguai desde o fim da ditadura militar e governou a capital, iniciando um ciclo ininterrupto de intendentes da Frente Ampla que permanece até agora, e o país em dois mandatos, entre 2005 e 2010 e entre 2015 e março deste ano. Sob seu comando e de José Pepe Mujica, o Uruguai viveu um momento de bonança econômica.

O Uruguai perdeu dois gigantes políticos de uma só vez, com a morte do Tabaré e a aposentadoria de Mujica, por dificuldades de saúde. Esses dois foram exemplos para o mundo de como democratas de esquerda governam e refazem seu país depois de uma ditadura militar.

Filho de operário

Tabaré Vázquez foi eleito o primeiro prefeito de esquerda de Montevidéu, em 1989, e duas vezes presidente do Uruguai, em 2004 e 2014, pela Frente Ampla, agrupamento de vários partidos e organizações de esquerda uruguaias, rompendo a alternância de 150 anos dos dois partidos oligárquicos, o Nacional e o Colorado.

A elegância física, a profissão médica, a calma e a cortesia no trato poderiam enganar e levar à suposição de que se tratasse de um filho da elite desse país de grandes estancieiros. Mas, ideológica e socialmente, Tabaré era do outro extremo. Filho de dona de casa e de operário de frigorífico e depois da estatal Ancap, e sindicalista petroleiro, nasceu e viveu até o início da fase adulta no bairro operário de La Teja. Em 1963 entrou na faculdade de medicina e se sustentava trabalhando como auxiliar de escritório, desde os 19 anos. Formou-se médico em 1969 e se especializou em oncologia e radiologia, influenciado pela morte de seu pai, sua mãe e de uma irmã por câncer entre 1962 e 1968, do que ele próprio veio a falecer.

Além da medicina e da política, era apaixonado por futebol. Fundou e presidiu dois clubes em seu bairro, Arbolito e Progreso, que em 1989, incrivelmente, foi campeão uruguaio. Também em La Teja, criou refeitório infantil, uma policlínica e um centro de treinamento esportivo.

Filiou-se cedo no Partido Socialista, integrou sua Comissão de Saúde e, a partir de 1978, os Núcleos Médicos Socialistas, uma das bases de contato com a população durante o cerco da ditadura. Em 1986 foi eleito para o Comitê Central do Partido Socialista, o representando na direção da Frente Ampla.

Em novembro de 1989, elegeu-se prefeito de Montevidéu com 34,5% dos votos, pela Frente Ampla. Mesmo durante o mandato, continuou atuando como médico e como professor da Faculdade de Medicina da Universidade da República.

Em 2004, depois de duas eleições em que venceu no primeiro turno, mas acabou derrotado no segundo, elegeu-se presidente da República. Cinco anos depois foi sucedido por seu companheiro de Frente Ampla Pepe Mujica e em novembro de 2014 voltou para novo mandato na presidência, com 53% dos votos.

Crescer distribuindo

Em 28 de fevereiro deste ano, depois que entregou a Presidência da República, Tabaré foi homenageado pela Frente Ampla em um comício na praça Samuel Lafone, em Montevidéu, em seu bairro La Teja. Ele fez o discurso que encerrou a festa:

“Quero agradecer a todos vocês. Nada se obtém sozinho. O que conseguimos, conseguimos entre todos. Disso participamos todos, falando com as pessoas, convencendo as pessoas, ganhando consciência.

Quero agradecer em nome de todos, em nome de minha família, em nome de minha companheira, María Auxiliadora, meus filhos, meus netos e netas, aos meus pais, trabalhadores deste bairro, aos meus irmãos e irmãs, aos meus amigos e amigas que aqui vivem toda a vida. E a todos meus queridos amigos e amigas da Frente Ampla, essa militância, nossa fonte, essa força política, essa quantidade de anônimos, imprescindíveis e fundamentais para que a Frente Ampla tenha chegado onde chegou. E também às companheiras e companheiros que nos têm acompanhado ao longo desses anos de atividade política e apoiando a gestão, comprometidos e enamorados pelo melhor projeto que tem o país para que sua gente viva melhor, que é o projeto político da Frente Ampla. Me refiro ao “companheiro general Líber Seregni e ao querido companheiro José Pepe Mujica. E aos que, não sendo da Frente Ampla, nos acompanharam. Que o aplauso mais forte da noite seja para vocês.

Vou dizer duas ou três ações fundamentais que fizemos para que, se pudermos gravá-las na consciência coletiva. Mas quero, ao final dessa prestação de contas deixar muito claro o legado que nossas forças políticas tomaram da história deste país e deixarão ao futuro.

Quero destacar a ação das Forças Armadas, porque quando chegou a Frente Ampla ao governo nacional entraram nos quartéis a buscar companheiras e companheiros desaparecidos. Acharam arquivos da ditadura, os abriram ao conhecimento da população, os levaram à Justiça e se encarceraram violadores dos direitos humanos. Tiveram que passar 25 anos para que isso acontecesse. E aconteceu porque a Frente Ampla chegou ao governo nacional.

Temos na educação pública a maior quantidade de estudantes na história do país. Em 2004, os recursos econômicos para a Educação eram de 3,2% do PIB, e um PIB de USD 13 bilhões. Em 2018 chegou a 5,2% do PIB para a Educação. O salário dos professores cresceu 90%. E o salário real dos funcionários da Educação cresceu 120%. E, mais importante, 54% dos estudantes universitários são da primeira geração de suas famílias que puderam chegar até o ensino superior.

A mortalidade infantil se reduziu à metade. Passou de 13,2 de cada mil nascidos vivos em 2004, a 6,8 de cada mil nascidos vivos em 2018. E há que seguir trabalhando para reduzir isso. Em 2019 se encerrou o ano sem nenhum caso de morte de nascituro.

Mas quero falar politicamente do legado que a Frente Ampla irá deixar para nosso país.

Em primeiro lugar, para levar adiante políticas públicas importantes o país tem que crescer economicamente. Mas crescer economicamente com justiça social. Não crescer economicamente e esperar que o bolo cresça, cresça, cresça para depois derramar a riqueza para o povo uruguaio. Não. Crescer e repartir o produto no próprio momento do crescimento, com justiça social.

Hoje o Uruguai tem a renda per capita mais alta da América Latina. E, o melhor disso, tem a melhor distribuição da riqueza, que tirou centenas de milhares de pessoas da pobreza nestes 15 anos de Frente Ampla. Não poderíamos levar adiante políticas públicas e políticas sociais sem esse crescimento econômico e sem a concepção ideológica e política de que há que se repartir entre todos a riqueza que o país produz.

Em segundo lugar, vou falar da tranquilidade social. Mas não se confunda: não estou falando da segurança cidadã. Estou falando de tranquilidade social. Só há inquietude e enfrentamentos sociais quando se submete as sociedades à discriminação, a negar os direitos que têm as minorias. Os governos da Frente Ampla trabalharam para recuperar os direitos dos milhares e milhares de uruguaios e uruguaias que foram relegados ao longo dos tempos.

Com a Costa Rica, somos o país mais democrático da América Latina. Temos um país com uma institucionalidade democrática consolidada. Mas da qual há que cuidar. Institucionalidade democrática, fortaleza das instituições de nosso país, paz social, porque aportamos o diálogo e a solução pacífica das controvérsias. E crescimento econômico com justiça social. Este é o legado político que deixam os três governos Frente Ampla ao povo uruguaio.”

E terminou recitando o poema “No te rindas”, do poeta uruguaio Mário Benedetti:

(…) No te rindas, aun estas a tempo / de alcanzar y comenzar de nuevo, / aceptar tus sombras, enterrar tus miedos, / liberar el lastre, retomar el vuelo. / (…) No te rindas, por favor no cedas, / aunque el frio queme, / aunque el miedo muerda, / aunque el sol se esconda y se calle el viento, /aun hay fuego en tu alma, / aun hay vida en tus sueños, / porque la vida es tuya y tuyo tambien el deseo, / porque lo has querido y porque te quiero. (…)

El Frente Amplio e o Rio Grande do Sul

Durante as ditaduras do Brasil (1964-85) e do Uruguai (1973-85), militantes dos dois países atravessaram com muita frequência a fronteira de um lado para outro, não apenas para fugirem da caça que os militares lhes faziam, mas também, desde o final dos anos 70, para articular sua derrubada. Discutiram a reconstrução do movimento sindical e partidário, aprendendo e se fortalecendo mutuamente. Pela proximidade geográfica, os militantes gaúchos foram os mais frequentes hóspedes e hospedeiros desses encontros, antes e depois do fim das duas ditaduras.

Tabaré Vázquez ficou conhecido por militantes políticos gaúchos em reuniões em Montevidéu, ainda durante o período barra pesada. O uruguaio era um jovem médico comunitário e militante de base do Partido Socialista, um dos partidos e movimentos do Frente Amplio, todos tornados ilegais pela ditadura; Olívio Dutra era presidente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e mantinha contatos com dirigentes e militantes da clandestina Convención Nacional de Trabajadores; Raul Pont saíra da prisão havia pouco e mantinha contatos com dirigentes do Movimiento de Participación Popular (dos Tupamaros). Não foi então que conheceram Pepe Mujica. Ele estava preso em Punta Carretas, onde ficou de 1971 até o fim da ditadura, 14 anos depois.

A partir de 1985, com a eleição de Alceu Collares (PDT) e a sequência dos governos petistas de Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e João Verle, as experiências desenvolvidas na Prefeitura de Porto Alegre passaram a ser um forte ponto de referência e intercâmbio também para os partidos e movimentos do Frente Amplio uruguaio. Em 1990, quando Tabaré Vázquez assumiu como o primeiro intendente de esquerda de Montevidéu, Olívio Dutra já era prefeito da capital gaúcha desde o início do ano anterior, e a política de participação popular no governo e o Orçamento Participativo já eram a base das administrações petistas. Isso foi muito atraente para a esquerda mundial, assim como o foi o Fórum Social Mundial (“um outro mundo é possível”), desde janeiro de 2001, como locus de diálogo dos movimentos progressistas do mundo.

O PT perdeu Porto Alegre em 2004, depois de quatro mandatos. Mas, desde aquela vitória de Tabaré, em 1990, Montevidéu é administrada pela esquerda. Em setembro deste ano a engenheira e ex-ministra da Indústria Carolina Cosse foi eleita para o sétimo mandato consecutivo da Frente Ampla na capital uruguaia. E nunca deixou de fluir o trânsito de militantes e assessores entre as duas capitais.

Quando Tabaré assumiu o primeiro dos três mandatos da Frente Ampla na presidência do Uruguai (do início de 2004 até fevereiro deste 2020, com Tabaré, Mujica e novamente Tabaré), Olívio já havia terminado o primeiro mandato petista no governo do Rio Grande do Sul (1999-2002). Mas Tarso Genro (2011-2014) governou o estado ao mesmo tempo em que Pepe presidia a República Oriental e os encontros oficiais entre os dois e integrantes de suas administrações continuaram quase rotineiros. Ademais da identidade cultural, suas economias são complementares e uma é mercado “natural” para a outra (afora a carne, quase exclusiva para o mercado norte-americano).

Olívio Dutra sobre Tabaré Vázquez

O falecimento de Tabaré Vázquez neste 6 de dezembro representa a morte de um companheiro dos bons e dos péssimos momentos da história. Neste breve texto, o ex-deputado federal constituinte, prefeito de Porto Alegre e governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra homenageia o cidadão e militante político uruguaio:

“Tabaré Vázquez, médico comunitário, no seu ofício prestava atendimento de saúde humanizado e profissional à população montevideana mais demandante de políticas públicas. E com ela dialogava, ensinando e aprendendo.

Conheci Tabaré Vázquez atuando na base da Frente Amplio de esquerda, que veio tornar-se mais tarde a alternativa democrática à ditadura militar que combatia. Tabaré Vázquez foi o primeiro intendente de esquerda eleito em Montevidéu. O governo da Frente Ampla, liderado por ele, estabeleceu relações inovadoras com a cidadania de Montevidéu e inaugurou uma sequência de governos transparentes e participativos na capital do Uruguai, tornando-a referência na América Latina e no mundo e cacifando-o para mais tarde ser eleito presidente da República Oriental do Uruguai.

Os governos da Frente Popular em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, intercambiaram diálogo, experiências de projetos na área social, direitos humanos, economia, turismo e cultura no período em que Tabaré foi prefeito e depois presidente da República. E essa relação rica sempre esteve em consonância com a política externa multilateral do governo do presidente Lula e da presidente Dilma.

O falecimento de Tabaré Vázquez consterna a todos nós, pois sua conduta como cidadão, administrador público, médico, militante político de esquerda é um sinal de que um mundo novo é possível e é anunciador do tanto de desafios que temos no presente e no futuro para serem enfrentados e superados, agora sem sua presença física, mas tendo como sinuelo o amadurecimento de sua farta semeadura.

Descanse em paz, companheiro Tabaré Vázquez. O povo uruguaio e latino-americano o terá sempre na sua memória.”

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