A Psicologia é uma das áreas do conhecimento que vem produzindo instrumentos e contribuições importantes para os meios de comunicação que atuam na manipulação da subjetividade, buscando garantir reprodução e lucro ao capital. Ela também trouxe contribuições críticas, mas talvez possamos afirmar que não foi capaz ainda de estimular a resistência necessária a este enfrentamento. E é disto que trata este texto.
O tema da manipulação de subjetividades não é novo entre nós. O mundo conviveu com diferentes níveis e tipos de manipulação das informações ao longo do tempo. Mas todos sabemos que, neste momento, as ferramentas de manipulação e expropriação da intimidade chegaram a uma sofisticação impensada e inaceitável. A sofisticação diz da potência destes instrumentos e da sua naturalização, o que faz, muitas vezes, com que não percebamos sua eficiência e seu impacto social e individual.
Todos os fluxos da vida estão, hoje, convertidos em dados, permitindo que quase tudo sobre nós seja de conhecimento de grandes corporações que instalam plataformas de coleta de dados e criam algoritmos para organizá-los, afirmando padrões que permitem conhecer os “consumidores” e/ou os “eleitores”.
A coexistência de quatro mecanismos bastante identificáveis criou a situação grave e de ataque que vivemos hoje: a captura generalizada de informações sobre as pessoas, a identificação de nichos de audiência, a informação dirigida e customizada a cada um desses nichos e as tecnologias de comunicação (que permitem um nível extremo de individualização e velocidade no acesso a ela). Os vínculos e a convivência social estão sob ataque; o desenvolvimento de cada cidadão e a intimidade de cada pessoa estão sob ameaça. O ódio vem se tornando sentimento preponderante; a intolerância característica psicológica de muitas pessoas. O outro perde importância e passamos a acreditar que podemos nos desenvolver sem ele.
Tornou-se necessário reconhecer a existência dessas novas e ameaçadoras formas de manipulação das subjetividades, compreender a dinâmica e peculiaridades dos instrumentos e procedimentos utilizados para produzi-la, para identificar formas de resistir a essa manipulação e encontrar meios de anulá-la.
Esta tarefa não é para poucos e nem mesmo para um setor ou atividade profissional específica. É uma tarefa para a sociedade que deverá enfrentar o dilema de reconhecer a importância de ferramentas inovadoras, mas saber da necessidade de combater o papel colonizador destes instrumentos (colonialismo de dados como nos ensina Sergio Amadeu) e o risco de tê-los como inimigos, na medida em que são utilizados sem um controle social adequado.
Poderia alguém argumentar que as ferramentas do capital não podem ser controladas. O capital é feroz inimigo das iniciativas que o cerceiam ou impedem; que todos os esforços do capital são para produzir e reproduzir o valor e permitir que o circuito da mercadoria se feche. Mas as lutas de quem quer outro mundo (possível) estão, exatamente, nas contradições, nas brechas, dado que o capital não ocupa a totalidade das possibilidades da existência (apesar de todos os esforços).
É preciso construir atores sociais (coletivos) que possam enfrentar o ataque a que estamos submetidos. É preciso conhecer a tramas do capital na construção e uso das ferramentas de inteligência artificial; necessário perceber a dimensão planetária do problema social que se vive; reconhecer nosso desconhecimento e produzir a desnaturalização do processo.
As ferramentas que os humanos construíram precisam ser objeto de aprendizado. Ensinamos nossos filhos a ler um livro, a manusear uma tesoura, a usar os lápis de cor, a colar, a vestir, a utilizar adequadamente os talheres, mas temos deixado isentas as ferramentas da comunicação. A escola chega mesmo a proibi-las, ao invés de desvendá-las. Tudo se dá como se não houvesse riscos no uso destes instrumentos; como se não fossem produzidos com intenção.
A contribuição da Psicologia é continuamente referida nas explicações sobre a organização de algoritmos, na identificação de resultados a serem obtidos, no apontamento de fazeres humanos que deverão sofrer interferência. É unânime entre os atores que debatem inteligência artificial o reconhecimento de que a Psicologia tenha um papel preponderante no tema. Os objetos de atenção da Psicologia são o alvo principal de ferramentas como os algoritmos. A começar pela atenção das pessoas, as formas de capturá-la e retê-la, para depois vender a quem possa pagar, chega à captura de sinais emocionais ou à tentativa de produzir novas emoções que sejam base para ações concretas das pessoas alvo dessas ferramentas, seja para realizar uma compra, seja para votar.
Resta ainda verificar qual tipo de iniciativa o compromisso ético político da profissão deva realizar quando os impactos sociais produzidos por ela sejam deletérios.
Para nós, no Instituto Silvia Lane (http://www.compromissosocial.org.br/), este é o problema de maior urgência a ser enfrentado no Brasil e em todo o planeta. Mesmo reconhecendo que o combate à desigualdade social seja e deva ser o eixo estratégico da atuação de qualquer organização que se pretenda democrática, compreendemos o inadiável de enfrentar a ameaça inerente à manipulação das subjetividades.
A Psicologia deve providenciar respostas para essa situação. Toda a Psicologia está sendo posta, direta ou indiretamente, a serviço da manipulação de subjetividades. O que falta para a Psicologia reconhecer a importância deste assunto e a necessidade de produzir saberes críticos capazes de se constituírem como resistência? Não se pode aceitar o silêncio ou a postergação frente ao ataque identificado. Estamos sob ataque, mas também estamos em alerta!