O filme “Mank” relata um período da vida conturbada do polêmico roteirista e faz um tributo a Hollywood dos anos 1930 e 1940
Herman J. Mankiewicz era um roteirista talentoso. Era também um beberrão contumaz, jogador inveterado e um trocista incorrigível. Em 1926, ainda crítico de teatro em Nova York, anunciou num famoso telegrama ao colega Ben Hecht, referindo-se a Hollywood: “Há milhões para se ganhar lá, e sua única concorrência é de idiotas.” Dizem que muitos escritores rumaram para a Meca do cinema por conta desse telegrama. E que Mank, como era chamado, sacrificava um emprego por uma boa piada. Mas foi a bebida que fez com que fosse demitido de diversos empregos. Assim como o jogo, que acabou por provocar sua queda final na MGM, ao ser flagrado pelo produtor Louis B. Mayer no refeitório do estúdio em plena jogatina. Isso depois de implorar ao chefão um adiantamento de 30 mil dólares de seu novo contrato e jurar abandonar o pôquer, que lhe trazia enormes dívidas.
Mank foi despedido da MGM no dia seguinte. E entrou para a lista negra de alguns dos principais estúdios de Hollywood. De modo que deixou a mulher cuidando das suas dívidas e voltou para Nova York de carro com outro escritor. Não sem antes sofrer um acidente na estrada. Foi nessas condições – desempregado, sem dinheiro, com uma ressaca abominável e engessado dos quadris ao tornozelo – que Herman J. Mankiewicz recebeu a visita filantrópica de Orson Welles, que lhe ofereceu 500 dólares semanais para transformar contos em roteiros para rádio. Mas logo mudaram o foco para filmes. Até porque fazia anos que Mank desejava escrever sobre William Randolph Hearst, dono de um império jornalístico dedicado ao sensacionalismo e à política reacionária e considerado pelos liberais da época um demagogo perigoso. E Mank já tinha o filme na cabeça.
O roteiro e a briga pelo crédito
Assim nasceu “Cidadão Kane” (1941), um dos maiores clássicos do cinema. Mas o parto não foi nada fácil. Orson Welles, diretor e protagonista do filme, no papel do megalomaníaco Charles Foster Kane (inspirado no magnata da mídia), achou o roteiro de Mankiewicz lento e prolixo demais, cortou cenas inteiras, reescreveu outras. Mank fez o mesmo em cima das investidas de Welles. Depois de mudanças substanciais, de um revisar os esboços do outro inúmeras vezes, a dupla chegou a um consenso. O problema era que o contrato de Welles na RKO especificava que o roteiro de cada filme deveria ser escrito só por ele, ou seja, Mankiewicz não teria direito ao crédito. Welles, o jovem prodígio de Hollywood, talvez até considerasse correto que um beberrão como Mank se desse por satisfeito como eminência parda do roteiro, afinal 500 dólares semanais não eram de se jogar fora, principalmente para quem estava, não tinha muito tempo, sem um centavo no bolso.
Mank não pensava dessa maneira. Para ele, o crédito em “Cidadão Kane” era a oportunidade de recuperar os anos perdidos com jogatina e bebedeiras. Por isso ficou incomodado ao ler em uma coluna de jornal que Welles andava dizendo que era o verdadeiro autor do roteiro. Então Mank foi à Screen Authors Guild e o denunciou. Welles até chegou a dizer que desejava dar o crédito aos dois. Já Mank revelou que o outro lhe ofereceu um bônus de 10 mil dólares em troca do crédito total. E, como era um devedor compulsivo, pediu conselhos a Ben Hecht sobre aceitar ou não a bolada. “Fique com os 10 mil e traia o filho da puta”, sugeriu Hecht. A briga pelos direitos autorais só teve fim quando a Screen Authors Guild determinou o crédito duplo. E com direito ao nome de Mank acima do de Welles. Aliás, talvez por conta da influência de Hearst nos grandes estúdios, “Cidadão Kane” ganhou apenas um Oscar: justo o de Melhor Roteiro.
A criação de Charles Foster Kane
Mas qual dos dois, afinal, foi o verdadeiro autor do celebrado roteiro? Em “Mank” (2020), o diretor David Fincher – dos ótimos “Garota Exemplar” (2014) e “Millennium: os Homens que Não Amavam as Mulheres” (2011) – dá o crédito a Herman J. Mankiewicz. O longa começa quando o acidentado Mank (Gary Oldman), ainda engessado dos quadris ao tornozelo e já queimado na indústria do cinema, é contratado por Welles (Tom Burke) para escrever “Cidadão Kane”. Conhecendo a fama de Mank, o parceiro comercial de Welles, John Houseman (John Troughton), isola-o num rancho distante, longe de festas, jogos e bebedeiras, para se concentrar no trabalho. Assim, com a ajuda de uma enfermeira (Monika Gossmann) e uma assistente datilógrafa (Lilly Collins), Mank começa a extrair o melhor de suas experiências com William Randolph Hearst (Charles Dance) e a atriz Marion Davies (Amanda Seyfried), amante do magnata, de quem era amigo.
Da mesma forma que “Cidadão Kane” desnuda o passado de Kane/Hearst, “Mank”, através de flashbacks sucessivos, esmiúça a vida pregressa do polêmico roteirista, anterior a seu isolamento no rancho. Acompanhamos Mank nos bastidores dos grandes estúdios, nos embates políticos, em reuniões, jogatinas, festas e jantares suntuosos. O filme, entre idas e vindas no tempo, faz um tributo a Hollywood dos anos 1930 e 1940. Fincher passeia pelas intrigas e mexericos da época, mostra como o poder do cinema foi utilizado para fins antiéticos e apresenta o cenário político-social dos anos 1930, que sofria os efeitos da Grande Depressão. Entre os personagens, desfilam figuras emblemáticas como Louis B. Mayer (Arliss Howard), o todo-poderoso da MGM; o cineasta Joseph Mankiewicz (Tom Pelphrey), irmão mais novo de Mank; os produtores Irving Thalberg (Ferdinand Kingsley) e David O. Selznick (Toby Leonard Moore); e os roteiristas Ben Hecht (Jeff Harms) e George S. Kaufman (Adam Shapiro).
Imersão nos Anos de Ouro do Cinema
O roteiro de “Mank” foi escrito nos anos 1990 pelo pai de David Fincher, Jack Fincher, falecido em 2003, e é inteiramente baseado em um famoso artigo da crítica de cinema Pauline Kael, “Criando Kane”, publicado no New Yorker em 1971. O texto, se não chega a ser brilhante, faz boas críticas à relação entre poder e entretenimento, expõe os interesses políticos que invadiam os grandes estúdios e aborda inclusive a criação de fake news. Já a excelente fotografia em preto e branco de Erik Messerschmidt, com suas sombras, jogos de luzes e contrastes entre o claro e o escuro, traz para a obra a beleza estética dos filmes noir, além de remeter à estética quase expressionista de “Cidadão Kane”. Não por acaso, “Mank” ganhou o Oscar de Melhor Fotografia. Por fim, a maneira como as cenas foram tratadas, dando a impressão de película envelhecida, e o som e trilha sonora gravados somente em um único canal, dão a sensação de que estamos assistindo a um típico clássico da Era de Ouro de Hollywood.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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