Há uma linha muito sutil entre a coragem e a loucura. Já entre a compaixão e a indiferença, há uma planície de sentimentos como a simpatia, a amizade, a inveja, a arrogância e outras tantas virtudes e vícios que fazem de nós, humanos, ora santos, ora demônios. Marina não sabe se é santa ou demônia.
Como tantas pessoas, comuns como ela, espantou-se com o submarino desaparecido no fundo do mar recheado de ricos. Acompanhou com compaixão o espetáculo dramático das notícias entre a agonia de imaginar-se presa num submarino e a incerteza de se meter a afundar num tubo de metal até às profundezas do oceano. Tendo dinheiro para ir aonde quiser, para fazer o que lhe der na telha, a troco de quê toparia uma sandice dessas? A compaixão começa com um pôr-se no lugar do outro. Um entender ao outro. Mas Marina, mesmo compassiva, não entende essa gente cheia de grana.
Dinheiro não traz felicidade, dizem. Mas traz algum conforto e, no desconforto da vida endividada de Marina, viria bem a calhar. Dinheiro deveria preencher o vazio de seus saldos, incertezas e agonias. Mas quando se tem demais, parece que ele cria um vazio maior ainda. O vazio do tédio. O vazio da vida em que tudo o mais que se queria, conquistou. E sobrou para ser conquistado só o risco e algumas agonias e incertezas das quais o ter dinheiro lhe afasta.
A compaixão de Marina se faz mais plena para com o naufrágio de um navio de refugiados na Grécia. Morreram mais de quinhentas pessoas. A maioria mulheres e crianças. Os que sobreviveram, foram tratados como prisioneiros. São gente ilegal. Gente proibida de viver no lugar de onde vieram e proibidas de tentar viver no lugar para onde conseguem chegar. Quando conseguem chegar.
Sua compaixão não é uma questão de número, gênero ou idade dos mortos. É mais por facilidade para se colocar no lugar do outro. Algumas mudanças de lar na vida de Marina foram por necessidade. Mas nunca pela necessidade de fugir de algum lugar onde a vida ou a dignidade estivessem em risco. Mas ela entende os perigos e dificuldades de se insistir em viver quando o resto do mundo parece não se importar com sua vida ou morte.
Essas tantas crianças mortas quase não chamaram a atenção dos jornais e tevês. Porque não chamam a atenção do público, sempre tão distraído com seus entretenimentos e notícias de gente mais importante e querida que crianças refugiadas. Marina não entende o porquê dessa indiferença quase absoluta. Não consegue entender a planície de sentimentos que afastam tantos da compaixão e os mantém na indiferença ao sofrimento de alguns e, ao mesmo tempo, aproxima as mesmas pessoas da compaixão por outras.
Tudo porque para tantos, gente não é simplesmente gente. É complexamente gente diferente umas das outras. Diferente em suas peles, línguas, modos de viver e de morrer. Diferente na atenção para sua vida e na compaixão que pode despertar. Diferente nas suas indiferenças.
Marina leu que o submarino implodiu. Explodiu para dentro, amassado pelo mar. Os ricos encapsulados morreram instantaneamente. Sem tempo, sequer, de se perceber a morrer. Tragados na mesma imensidão marinha onde centenas de crianças refugiadas agonizaram à espera da compaixão salvadora que nunca chegou.
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Ilustração: Mihai Cauli
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