Em reunião com Lula, ministros palacianos, líderes no Congresso e Sonia Guajajara, Marina Silva diz ter levado uma ferroada de arraia, mas que permaneceria no cargo para resistir. Não disse quem era a arraia.
Algumas correntes da base do governo padecem da síndrome de Peter Pan, identificada em 1985 pelo psicólogo norte-americano Dan Kiley. Tudo bem, acreditam em sonhos, porém os confundem com a realidade, caminho mais curto para transformar sonhos em pesadelos.
A postura da faca no pescoço, que surge aqui e ali, como no caso do PSOL – marco fiscal, na tramitação da MP 1.154 – Marina Silva e Guajajara – suas falas na semana passada, insinuando que o governo não estivesse interessado em defender as bandeiras do meio ambiente e dos povos indígenas. Soam mais como discursos para seu público, dizendo o que ele quer ouvir, mas isto não ajuda a governança.
De toda forma, há uma torcida para estas correntes conseguirem eco na sociedade e nos movimentos sociais que se traduzam em votos no Congresso para aprovar as propostas do governo.
Mutatis mutantis, é o mesmo discurso do início do processo eleitoral de 2022, quando várias lideranças assinaram abaixo-assinados para que Alckmin não fosse o vice-presidente de Lula. É uma esquerda que não entendeu que derrotar o projeto ultradireitista exigiu a união pouco provável de forças políticas muito díspares, unidas apenas pela negação. Se tivesse prevalecido este discurso, estaríamos vivendo Bolsonaro II.
Como estrategista, Lula avisou na época: “Nosso governo não será um governo do PT. É importante, Gleisi, você que é presidente, saiba: nós precisamos fazer um governo além do PT“. E sua construção política segue assim: “… quando chegar 31 de dezembro de 2026, que a gente for entregar esse mandato para outra pessoa, esse país estará bem”.
Este discurso de uma certa esquerda lembra um pouco a atitude de Olavo de Carvalho aconselhando Bolsonaro a deixar de ser um “inativo e covarde” e fazer logo o que tinha de fazer para implantar a ditadura e governar. Se a Terra fosse plana, talvez o olavismo tivesse razão e um cabo e um jipe seriam suficientes para pôr um fim na democracia de equilíbrio entre os poderes.
A reduzida racionalidade bolsonarista sugeriu outro caminho para atingir o mesmo objetivo. Primeiro entregou o governo para os deputados e militares, assegurando-se contra o instituto do impeachment, depois, no segundo mandato, se necessário, daria um jeito no Congresso e Judiciário.
O governo Lula é obrigado a conviver com um legislativo adverso e contrário a tudo que este governo representa. Votam convictos na defesa dos interesses da bancada ruralista e dos rentistas, votam como chantagistas para receberem recursos a serem alocados nas próprias paróquias. O fato é que são bandas organizadas e coesas na hora de defenderem seus interesses.
A mídia tem falado muito que a ministra Marina Silva pode sair do governo, por conta das eventuais derrotas no Congresso. Ela mesma chegou a insinuar que o governo não havia dado prioridade à defesa das questões ambientais na discussão da Medida Provisória aprovada pela Comissão Mista do Congresso Nacional. A ameaça foi suavizada nestes últimos dias. Mesmo assim, a postura não contribui e mostra uma incompreensão do contexto político. Na Terra redonda, apesar da ministra ser um ícone nesta luta ambiental, seu discurso, para ser efetivo, precisa ser transformado em força política para garantir que Lula III consiga cumprir com a agenda ambiental que desde o início colocou como estratégica para o Brasil se tornar protagonista mundial no futuro próximo.
Diferente dos sonhos, parcelas importantes dos eleitores não escolheram uma proposta de esquerda, escolheram Lula para acabar com a fome e pela defesa da democracia. E para o Legislativo, o voto da maioria foi para o conservadorismo, clientelismo, em favor das práticas da Casa Grande e Senzala, do garimpo ilegal, do desmatamento, da destruição física dos povos originários. Aliás, a Câmara acabou de provar isto ao aprovar o marco temporal que limita as demarcações das terras indígineas.
Uma batalha legislativa perdida, como esta última na Comissão Mista, deveria servir apenas para lembrar à Marina Silva e às correntes da esquerda que o caminho da mudança é o da transformação de vontades em mobilização capaz de pressionar votos de congressistas. Tornar o governo refém da ameaça de saída não parece ser o melhor para o país.
Fazendo uma justa avaliação da governança do governo, se impõe, em primeiro lugar, impedir o sucesso dos sempre latentes golpes parlamentares (ou de força, como o ensaiado em 8 de janeiro de 2023). Em segundo lugar, está o objetivo de impedir o retorno pelo voto da extrema direita disposta a acabar com a democracia.
Assegurar a manutenção do sistema democrático funcionando exige políticas capazes de manter o apoio daqueles segmentos da base da pirâmide social que deram a vitória à Lula. Também não é difícil perceber que neste mesmo processo é preciso ampliar a base de apoio, mostrando que o Brasil vai retomar o crescimento e manter a estabilidade dentro do regime democrático.
Neste sentido, a peça chave é atrair investimentos produtivos que gerem emprego e renda. Sem querer jogar com ilusões, as expectativas devem ser baixas e aderentes à Terra redonda. Nenhuma ilusão, estes serão os quatro mais longos anos de nossas vidas. As falas de Marina e Guajajara depois da runião palaciana mostram um recuo, muito bom para o país.
Aliás, “Expectativas Baixas”, este deveria ter sido o título do artigo e, desde o início deveria ter sido esclarecido que este é um artigo para as correntes que lutam pela democracia.
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Ilustração: Mihai Cauli
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