Melissa penteava os cabelos por horas. Não apenas por vaidade. Era o momento de estar só consigo mesma. Quem a observasse veria que, escovada após escovada, encarava-se no espelho. Vez ou outra parecia desconcentrar-se. Inclinava a cabeça e mirava a cabeleira com olhos tortos e boca entreaberta em frenéticas escovadas. Depois o ritmo diminuía, a cabeça se endireitava, e voltava às escovadas lentas e olhar penetrante no espelho.
O que buscava na própria imagem era um mistério. Mesmo para quem a conhecia bem. Ela não falava no assunto. E os íntimos reconheciam naquele momento uma intimidade que suscitava mais respeito que curiosidade.
Uma vez, mostrou-se neste estado nas redes sociais. Seguidores acharam estranho. Alguns entenderam como vaidade. Tipinho ou alguma forma de futilidade para outros. A maioria curtiu porque tinha o hábito de só curtir mesmo. Só uma meia dúzia percebeu o ensimesmamento de Melissa.
Era muito difícil para gente que nunca se viu de verdade entender o que se passava com Melissa ao espelho. Se bem que ela também não ajudava. Vendia-se três, quatro ou mais vezes por dia como uma imagem nas redes. E só uma imagem. Fotos e mais fotos de biquíni com alguma frase séria que não era dela. Ou vídeo em que dublava uma fala curta e rebolava.
Likes e seguidores vinham aos montes. A maioria homens. Quase todos a elogiavam. Ninguém ali a conhecia. Talvez, nem ela mesma.
Conhecer alguém é conseguir ver para além da imagem. É perceber aquela essência que é invisível aos olhos, mas visível ao coração. Talvez, era isso que Melissa procurava no espelho todos os dias. Inutilmente. Não sabia que essas coisas só enxergamos através dos outros. Que o próximo é nosso espelho quando nosso coração está próximo de alguém.
Entregar-se ao olhar dos outros também não adianta. Melissa entregou-se como pôde em caras e bocas. Peitos e bundas. Estáticas ou dançantes. Expressivas ou canastronas. Recebeu milhões de elogios e comentários. Alguns simpáticos. Outros obscenos. Todos inúteis. Falas de cegos que só veem imagens.
Consumindo o que vê, o mundo tornou-se cego. Cego de si mesmo. Cego ensimesmado. Carente de si mesmo em procura do essencial nos lugares errados.
Em busca de amores, encontrou desejos. Em busca de sentido, encontrou o consumo. Em busca de ética, encontrou cancelamentos. Em busca de moral, encontrou lacrações. Em busca de líderes, encontrou ídolos.
Segue a vida vendo corpos, lacrações, mitagens, cancelamentos e ofertas imperdíveis. Tapumes que escondem com imagens e pantomimas o vazio de nós mesmos.
Melissa foi enterrada sem velório por causa da Covid. Nas rápidas orações antes da cremação, seu empresário tirou fotos do corpo. Seria a última postagem. Desistiu quando encarou o olhar de reprovação do coveiro.
Por ironia ou acaso – ou os dois – seguidores compraram uma coroa de flores com espelho ao centro e uma frase tirada do Pequeno Príncipe: o essencial é invisível aos olhos. Ao postar, perceberam que o perfil de Melissa não existia mais.
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