Minha geração se habituou a fazer concursos até para entrar no ginasial. Um estresse após o outro. Eu mesmo fiz um vestibular para estudar economia e outro para ciências sociais. Fiz o exame nacional de seleção da ANPEC (Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia) para a pós-graduação, seguida de dissertação de mestrado, tese de doutorado, concurso para professor universitário.
Seria natural que, considerando minha experiência pessoal, a meritocracia fosse para mim algo de fácil aceitação. Mas, não é o caso. Vejo-a como mais uma das fraudes inocentes ou não tão inocentes, comuns nas sociedades capitalistas.
A meritocracia é um princípio ou um regime de seleção, antes de tudo individualista e nada solidário. É a fina flor do darwinismo social. O mais apto, vence.
Poderia ser algo justo, já que não há espaço para todos nos melhores empregos ou oportunidades. O que estiver mais bem preparado, é premiado.
Esse princípio está na base de algumas teorias sobre a dinâmica distributiva e sobre empregos, todas derivadas da teoria do capital humano. Teriam os melhores salários aqueles que tivessem a melhor formação educacional e experiência. Ou teriam mais empregabilidade aqueles que se dispusessem à atualização permanente em um ambiente de forte transformação organizacional e tecnológica.
O professor L. G. Belluzzo, com seu humor demolidor, resumiu estas teorias numa versão negativa da Lei de Say, afirmando que a oferta de mão de obra qualificada não gera sua própria demanda. O fato é que, quando a demanda agregada se enfraquece ou as transformações tecnológicas disruptivas se impõem, vão para as ruas os diplomados e os não diplomados, os qualificados e os pouco qualificados. E os salários de todos que sobrevivem no mercado de trabalho, caem.
Doutor Pangloss de pronto diria que neste melhor mundo possível, a situação dos salários pioraria mais para os menos qualificados e a empregabilidade seria menor para os que tivessem menos agência. Pois é, na corrida para o fundo, os menos preparados chegam primeiro. Mas, os mais bem preparados seguem logo atrás – que o diga o ressentimento das classes médias mundiais com a globalização.
A meritocracia não falha apenas na macroeconomia. Falha em vários outros aspectos. As mulheres, mesmo que mais qualificadas, ganham menos que os homens. Seja qual for o nível de qualificação, esta diferença salarial está presente. O mesmo ocorre no acesso aos postos superiores na hierarquia organizacional. Há muito menos mulheres em cargos de direção de empresas, instituições públicas e privadas.
O mesmo ocorre quando se trata de cor ou etnia. O racismo está presente no mercado de trabalho, mesmo onde as populações negras são maioria. A presença de negros em cargos de direção é mínima, mesmo quando o candidato tem alta qualificação. A histórica formação social escravagista brasileira opera um teto de vidro para os negros. A lei proíbe a discriminação, mas ela existe e é aplicada de forma sub-reptícia e muitas vezes, nem tanto.
O darwinismo social e a meritocracia, como sua flor ideológica, são fraudes. E muito maiores quanto maiores são os privilégios vigentes na sociedade.
Muitos sociólogos já trataram de forma exaustiva a cultura dos privilégios no Brasil. E é sempre necessário voltar a este tema, principalmente quando se trata de denunciar a fraude nada inocente da meritocracia.
As carreiras de Estado deveriam ser o exemplo maior da meritocracia. Chegam ao oficialato superior os oficiais mais bem preparados, aos tribunais os melhores juízes, às embaixadas os melhores diplomatas e assim seguiria a caravana dos méritos.
No entanto, o diabo está no detalhe, como diz o poeta.
O acesso à carreira diplomática exige muitos filtros sociais: um diploma de nível superior, o domínio razoável de três línguas, além de bom português. E a frequência a um curso preparatório, geralmente oferecido por diplomatas, para enfrentar o concurso do Itamaraty. Não é fácil encontrar negros nesta carreira e tampouco aqueles que não vêm de uma família de diplomatas ou funcionários internacionais. Afinal, a cultura elitista e do branqueamento sempre quis projetar a imagem de um Brasil branco, o que excluiria ad limine os negros. Mas a lei proíbe a discriminação. Neste caso, o critério das línguas exclui os negros, pois poucos chegam ao nível superior. Os que chegam, não falam outras línguas, os que falam, não falam três. Aliás, quem fala? Os filhos de diplomatas e funcionários internacionais falam.
Com os juízes ocorre algo parecido. Um censo familiar nesta carreira revelaria uma constante. A de que os juízes vêm de famílias de juízes ou advogados. E que os juízes de tribunais superiores vêm de uma longa árvore de ocupantes de cargos no judiciário brasileiro ou de políticos. Não é segredo que juízes de tribunais superiores trabalham pela ascensão de seus parentes no judiciário. A imprensa recentemente publicou o caso de uma jovem juíza feita desembargadora por injunções de seu pai ministro do STF. Isto não é a exceção, é a regra, mesmo que ilegal e imoral.
No caso das Forças Armadas isto também é muito comum e já vem desde os colégios militares. Existem famílias seculares entre os militares. O recente escândalo do ajudante de ordens do ex-presidente, que se tornou operador político do chefe, revela o lado incômodo destes parentescos. O tenente-coronel é filho de um general, que está inconformado com a exposição do filho. E deveria estar mesmo, pois é uma mancha no histórico da família militar.
Aliás, uma das razões de militares resistirem tanto à Comissão da Verdade está menos nas lealdades ideológicas com uma geração de golpistas já fora do poder e mais com o incômodo que é ter na árvore genealógica da ilustre família militar alguém que perseguiu, torturou, matou e escondeu corpos e falsificou certidões de óbitos. É mesmo vexatório e não contribui para uma boa carreira militar num regime democrático.
Por último, mas não menos importante, as famílias políticas. Em todas as regiões do país, há clãs políticos com sucessões hereditárias no comando do poder local ou federal. Sarneys, Maias, Gomes, Neves, Magalhães, a lista é imensa. Estas famílias tratam de influir no preenchimento dos postos no executivo, legislativo e judiciário. Não há posto de relevância em que elas não se intrometam. A cultura dos privilégios, afinal, tem aí um dos seus núcleos de reprodução social.
Existem outros privilégios, de igual exorbitância. De que não tratarei neste espaço.
Dado este cenário devastador, as políticas afirmativas são mais do que necessárias para criar uma sociedade mais inclusiva – elas são imperativas. As quotas para negros em universidades, de gênero em partidos, o cuidado ao preencher cargos no executivo, considerando os quesitos de gênero, raça e etnia, a política de igual salário para igual trabalho. A aplicação correta das leis para evitar o nepotismo. O estímulo às políticas de recursos humanos inclusivas no setor privado.
A cultura da igualdade exige uma longa construção que passa pela superação da cultura dos privilégios. Não bastam apenas as leis, é preciso que sua aplicação não seja distorcida pelos políticos e aplicadores da Justiça.
E nada que foi dito aqui é no sentido de desvalorizar o esforço pessoal de cada um, pelo contrário. Visa ressaltar que a meritocracia, admirada pelo senso comum, disfarça as formas mais flagrantes de privilégios elitistas.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Da meritocracia à extrema direita“, de Luiz Marques.