O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo em visita à Roraima. Imagem: Ederson Brito/Futura Press/Folhapress

Às vezes a gente aprende o significado de uma palavra e pensa que nunca vai utilizá-la na vida. Mas a vida nos surpreende e com um pouco de receio, digo que a política externa brasileira chegou ao seu nadir com a recente visita de Mike Pompeo à Amazônia, tendo como guia turístico e parceiro subserviente na conspiração contra o governo da Venezuela nada menos que o chanceler brasileiro. Receio, porque algo pior ainda pode estar por vir. A esperança de que ao se chegar a este ponto só é possível ficar menos ruim.

Não se diga que se trata de uma questão meramente ideológica. Durante a República, o Brasil foi liderado em sua política externa por pessoas das mais diferentes colorações políticas, mas tendo em comum a respeitabilidade e a defesa dos interesses nacionais, em personagens como o Barão de Rio Branco, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas, Saraiva Guerreiro, Celso Lafer e Celso Amorim. Eventuais momentos e personagens menos relevantes existiram, mas se diferenciam pela falta de brilho e não pela negatividade de suas ações.

Provavelmente a última vez que o Brasil serviu de longa manus dos interesses de uma potência estrangeira em uma intervenção de uma nação vizinha foi na Guerra do Paraguai, quando junto com os países vizinhos, aniquilamos a população do país vizinho para defender os interesses do comércio britânico. Estivemos na invasão da República Dominicana como auxiliares de segunda ordem. As ações conjuntas de repressão dos regimes autoritários do período da guerra fria, ainda que servissem aos interesses e tivessem apoio norte-americano, também eram fundadas nas próprias concepções doutrinárias do regime local.

Triste o papel a que se prestou Ernesto Araújo ao servir de co-adjuvante emprestando a tela de fundo aos estertores do Governo Trump, que tenta obter algum dividendo na ameaça de intervenção, com mão de obra de terceiros, para derrubar o governo da Venezuela.

Apenas para deixar claro, não tenho nenhuma simpatia pelo governo de Nicolas Maduro. Há claramente uma derivação em direção a comportamentos autoritários nos últimos anos. Mas não se pode tratar o regime político da Venezuela com a métrica da guerra fria, em que se imputava aos inimigos ideológicos o título de totalitários e se tolerava todas as violações dos países aliados. A Venezuela é um país que realiza eleições, que além do presidente, tem outras autoridades democraticamente eleitas, como prefeitos, governadores e deputados. Se o sistema não é válido para uns, não poderia ser válido para outros. Por que Juan Guaidó seria legítimo se foi eleito pelo mesmo sistema eleitoral que levou ao poder os demais? Ou a acusação de fraude só vale para um lado?

Trata-se de um regime híbrido, com características autoritárias, com um sistema eleitoral que tem falhas de controle e uma liderança personalista que recusa críticas. Mas estas mesmas características podem ser atribuídas aos Estados Unidos da América de Trump. E como nos EUA, cabe aos seus cidadãos garantir que a correção de rumos seja feita, não às forças militares dos países que não concordam com o regime.

Infelizmente este não é um episódio isolado. A política externa brasileira tem sido exposta aos mais diversos episódios vexatórios em um período recente, quebrando com a tradição de defesa da ordem internacional, do respeito aos tratados, da solução pacífica dos conflitos e, pelo menos depois da redemocratização do país em 1985, da defesa dos direitos humanos. Em um movimento oposto ao de Juscelino Kubistchek, cujo lema era realizar 50 anos em cinco, o Governo Bolsonaro parece desejar destruir 80 anos de política externa em quatro.

Desde o início este governo flertou com o ridículo, com afirmações do ministro de que o Nazismo seria um movimento de esquerda. Dançou na corda bamba com a promessa de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, para agradar o chefe, a quem Bolsonaro declarou “I love you”, voltando atrás ao verificar as consequências na relações comerciais com os países do mundo árabe. Complementa-se com a viagem à Arábia Saudita, ignorando completamente o histórico de violações deste país, tendo recém ocorrido assassinato do jornalista Jamal Kashoggi. Foi conivente com o golpe contra o Governo de Evo Morales. A visita de Mike Pompeo é mais um elemento neste processo de destruição da credibilidade do Brasil como nação autônoma, amplificado pelo silêncio ou cumplicidade das forças armadas brasileiras sobre o papel que desempenhariam nesta espécie de Operação Condor do século XXI.

A sina brasileira é reforçada pelo efeito de conjunto. Em alguns momentos tivemos diplomacias presidenciais, em que o ocupante do cargo maior do executivo suplantou o do ministro das relações exteriores, como fizeram Fernando Henrique e Lula. Em outros, um presidente pouco afeito à esfera internacional, como Figueiredo ou Dilma, contou com um chanceler que liderou a presença brasileira nas relações externas. Agora temos um presidente que tem dificuldade até mesmo para ler um discurso em português, secundado por um chanceler que embora proficiente em várias línguas, não parece ter conteúdo para se expressar em nenhuma delas.

Mas até dos pontos negativos pode se encontrar um elemento positivo. O alto contraste entre as manifestações das atuais autoridades brasileiras e a história da diplomacia brasileira facilita tratar este momento como uma ruptura, uma descontinuidade, uma brecha que pode ser fechada no futuro e não como parte de uma continuidade, permitindo a retomada de posições históricas em um governo futuro sem um compromisso de continuidade com as posições atuais.

A falta de fundamento das posições do chanceler e do presidente favorece o descomprometimento com as suas afirmações. Se fosse sério, graves consequências da visita de Pompeo deveriam se esperar num prazo curto. Mas o zig-zag de posições permite prever que nada vai acontecer além de alguns quantos golpes de twitter e impropérios contra o Governo Venezuelano, cujo objetivo não é desenvolver uma ação real na esfera da relação entre os países, mas mobilizar, pelo discurso anti-comunista (coisa que o pobre do Maduro nem é), a base de apoio do bolsonarismo.

Para que nada de mais grave aconteça temos de contar com o bom senso que sobra nas instituições brasileiras, com o Congresso Nacional assumindo de forma efetiva o papel de supervisão da política externa que a Constituição lhe atribui e negando a autorização ao Governo Bolsonaro para qualquer aventura. À população brasileira cabe mobilizar-se em defesa, não do Governo Maduro, a quem não devemos qualquer apoio, mas à população venezuelana, que seria a principal vítima de qualquer tentativa de suplantar, pela força, os interesses das elites governantes da Venezuela pelos interesses do Governo Trump e dos Estados Unidos da América, com o auxílio dos títeres que possam arrebanhar no continente para fazer o seu serviço sujo.

É preciso estar vigilante sempre, para garantir que o que às vezes parece uma comédia, não seja apenas a parte introdutória do que pode ser uma tragédia.