Aviso aos leitores. Esta história pode gerar suspeitas ou até parecer o roteiro de um filme apocalíptico. Mas não é. Tudo está baseado em fatos reais. Os personagens não são inventados. E suas frases não estão editadas. Para televisão, logo depois da aprovação da “Ley Bases”, assim começa a fala do presidente da nação argentina. “A fase 1 está concluída”. Ele comemora a aprovação de sua Lei que, apesar de enfraquecida, com modificações em pontos-chaves e após quase seis meses de negociações com as províncias, acaba de se tornar o projeto que mais vai precarizar o Estado argentino desde o retorno da democracia.

É a primeira conquista de sua gestão, que lhe dá, entre outras coisas, poder total para fazer o que quiser em termos administrativos, econômicos, financeiros e energéticos. Durante um ano, Milei poderá prescindir do Poder Legislativo nessas quatro áreas. A nova lei facilita as empresas demitirem, punirem pela participação sindical e concede benefícios extraordinários para as grandes empresas.

A cerimônia de celebração é austera, num ambiente montado com móveis de apoio e iluminação artificial como num cenário de teatro. Tem uma câmera específica para transmitir sua mensagem oficial. Milei recorre à cenografia de La Nación +, um canal de TV a cabo pertencente ao jornal mais tradicional da Argentina e que se tornou a trincheira do governo libertário. É o mesmo que o viu nascer como um irado apresentador de talk show na televisão privada.

Entre bastidores e luzes brancas, coberto de maquiagem, o presidente colunista fala durante quase uma hora sem interrupções sobre o quão grandioso é viver hoje neste país e sobre o horizonte para o qual estamos nos dirigindo: a força do presente nos conduz inexoravelmente aos países desenvolvidos. Seremos Alemanha, Irlanda, Itália… Cada um que escolha o país preferido para se comparar. Este é o destino inevitável da Argentina conduzida pelo – atenção editores da seção Horóscopo – futuro Prêmio Nobel de Economia, doutor Javier Gerardo Milei.

É assim que ele imagina desde a escola, quando os colegas o tratavam como um geek, diz ele. Quando se trancava em seu quarto para escapar das surras de seu pai. Na faculdade de Economia, quando ninguém o seguia em seu divagar libertário. Assim. O nome completo. Os aplausos intensos, pesados e estrondosos; uma tempestade tropical de reconhecimento. O anúncio em inglês, o idioma de seus mestres. A chegada a Estocolmo. Outra vez os aplausos. Os grandes jornais a seus pés. Seus colegas, ligando para parabenizá-lo. Ele os fará pagar o preço do desprezo intelectual com o silêncio em privado e o desdém em público, quando tiver a oportunidade de falar em algum palco com microfone. Com o prêmio na mão, amargurado de choro, mal conseguirá falar. Como aconteceu em sua última viagem a Madrid, onde recebeu um prêmio na instituição liberal Juan de Mariana e, durante o jantar no Casino, lhe mostraram um quadro com seu retrato.

Por enquanto, ainda sem o Nobel na mão e sob as luzes do estúdio de televisão a cabo, Milei adianta que ainda faltam cerca de 800 reformas estruturais graças às quais a Argentina “vai subir 90 posições em termos de liberdade econômica”. Está eufórico. Orgulha-se de ter conseguido – na fase 1 – uma reforma cinco vezes maior que a feita por Carlos Menem. O mandato de Menem, que foi de 1989 a 1999, terminou com um desemprego de mais de 14 pontos, uma queda do PIB de 3,4%, a pobreza em 40% e uma indigência de 20%. Para isso, criará um novo ministério, a cargo do ex-presidente do Banco Central e autor intelectual de sua megalei, Federico Sturzenegger.

Pelo menos nas primeiras cifras oficiais de sua gestão, o governo de Milei está se aproximando dos números do menemismo. O INDEC (Instituto Oficial de Estatísticas) informou recentemente que, durante o primeiro trimestre do ano, o PIB caiu 5,1%, o investimento em 23,4%. E o desemprego chegou a 7,7%, dois pontos a mais que no último trimestre de 2023.

Sem mencionar os números, o presidente traduz o relatório do INDEC e diz que “consolidamos o déficit zero com números imponentes”. Talvez baseado no mesmo sonho do Nobel ou fruto de alguma das pílulas que usa para dormir nas viagens transatlânticas, Milei detalha os triunfos de seus primeiros seis meses: “Reduzimos a inflação de 17 mil para 50. Recompomos salários e aposentadorias que hoje superam a inflação. O gasto público caiu 30%, a economia fiscal é de 15 pontos, que agora retornam para o benefício das pessoas”.

A nova Lei de Bases não é nada mais que a irmã menor da Lei Ômnibus, o primeiro dos barcos legislativos que naufragou na inoperância de seus deputados em meados de fevereiro. Entre seus pontos-chave, está um novo regime de investimentos que, basicamente, entrega o país às grandes multinacionais com a intenção de que invistam no país. Com o RIGI (Regime de Incentivo para Grandes Investimentos), não haverá nada de impostos nem exigências aduaneiras por 30 anos.

Também haverá privatizações de 11 empresas do Estado. Nessa lista, foram poupadas as principais companhias, como a petroleira YPF, Aerolíneas Argentinas, Correio Argentino e Rádio e Televisão Argentina. Isso, para grande parte da oposição, foi considerado uma vitória.

A reforma trabalhista, inicialmente, estende o período de experiência de três meses para seis meses para as empresas com mais de 100 funcionários. E qualquer trabalhador que participe de bloqueios ou ocupações de empresas será considerado como falta grave e justificativa para demissão.

Também foi introduzido um imposto sobre a renda dos trabalhadores e o aumento do piso de bens pessoais, assim como uma nova anistia de capitais. Tradução: os que ganham menos vão pagar mais impostos e os que ganham mais vão pagar menos impostos.

Antes de terminar sua mensagem ao país, o presidente sintetiza algumas das razões de sua chegada ao poder: “Em condições normais de pressão e temperatura, não se tem um presidente libertário. Por alguma razão, sou o primeiro presidente liberal libertário da história da humanidade. Não é o padrão, não é normal, tem que estar tudo muito quebrado”. (Publicado por Ctxt, em 07/07/2024)

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Tradução: Eduardo Scaletsky
Ilustração: Mihai Cauli
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