No ano novo que se avizinha, desejo que cada um possa se encontrar consigo mesmo e aprender a cantar por um país mais justo e feminista.

George Steiner é um pensador das artes e no seu livro “Errata: revisões de uma vida” conquista o lugar de mestre dos ensaios. São 11 temas, verdadeiros passeios sobre livros, músicas e sua vida integrada na sociedade europeia.
Nas últimas semanas, vendo entrevistas do Steiner no YouTube, percebi-o como um amigo com o qual sempre se aprende. E um de seus poetas de referência no “Errata” e outros escritos, é Rainer Maria Rilke, o mesmo que Freud elogiou no seu ensaio poético “Transitoriedade”. O poeta era admirado desde jovem. Foi um mestre da espiritualidade e da linguagem, que explora a solidão, a morte, o divino. Ele escreveu que o essencial é a possibilidade de mudar a vida.
Todo ser humano vive o desafio de mudar, de arriscar novos caminhos, o que envolve decisões que atravessam a existência. A última frase do poema “O torso arcaico de Apolo” de Rilke é: “Muda a tua vida” ou “Força é mudar a vida”. Esse poema expressa a beleza da arte e a necessidade de transformação. Algo semelhante está em seu livro mais lido “Cartas a um jovem poeta”: “Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair suas riquezas”. Eis uma frase para ser repetida, apreendida, nunca esquecida. É preciso ser poético para extrair as riquezas do cotidiano.
Não é difícil escrever sobre a importância da metamorfose íntima, mas convém lembrar que há uma compulsão à repetição que resiste à mudança. Lembro um importante amigo de infância apaixonado por corrida de cavalos, que trocava tudo pelas apostas. Muitas pessoas tendem a se repetir, não conseguem evoluir, são conservadoras, só pensam em seu umbigo. Cada um tem seus limites quanto à capacidade de curar feridas narcisistas que geram desamparos.
A essência da poesia é a metamorfose, viver uma vida poética é ser capaz de se reinventar. Antes de Rilke, já Dante em “A Divina Comédia” indica que mudar a vida é uma conquista essencial. É preciso atravessar o inferno para mudar a vida; travessia que requer a ajuda de uma parceria real ou imaginária, como Dante fez com Virgílio.
Todo analista escuta as indecisões de seus analisandos, que perguntam sobre o que fazer, como acertar na decisão. Nem o analisando e nem o analista sabem, e daí se abre o espaço para escutar sobre as opções de ser ou não ser, ou ainda a de ser e não ser. Diante das decisões nem sempre se acerta, pois a incerteza integra a condição humana. Decidir é tão difícil que o Todo-poderoso decidiu enviar o dilúvio para erradicar o mal e fracassou, prometendo a Noé não repetir.
Exemplifico como se constrói uma mudança através de um exemplo: havia um jovem de 31 anos que trabalhava numa pequena empresa familiar criada pelo seu bisavô, que tinha prejuízo fazia uns dois anos. Já sobre sua vida pessoal, contou que não tinha namorada, pois todas só queriam casar. Portanto, não tinha muita satisfação afetiva e nem no trabalho. Seu pai não o escutava, pois era ele que mandava, e logo vivia angustiado, desanimado. Falava de um grupo de amigos com o qual bebia muito e, às vezes, usava drogas.
Ao longo de seis meses, sua terapia andou lentamente, parecia uma situação impossível, mas ele quase não faltava. Tivemos paciência. Por fim, aos poucos, começou a cansar da solidão e foi se animando para algum namoro. Seu pai, finalmente, começou a entender que ele tinha razão quanto a fechar a empresa familiar. Após esses seis meses, a vida do jovem foi mudando aos poucos, e as suas decisões foram dando certo. Por exemplo, mudou de um apartamento úmido para uma pequena cobertura num bairro mais barato. Arriscou num namoro e se apaixonou, planejou conviver com o novo amor uns dois a três anos e aí se casar. Ele se surpreendia, falava mais animado de tudo e eu me perguntava sobre a incrível mudança.
Muito poderia se escrever sobre quanta capacidade tinha adormecida em si, para poder melhorar tanto. Conviver meses com as incertezas foi essencial, como caminhar na escuridão, atravessar os círculos do inferno. O jovem veio para mudar sua vida e mudou e, mais uma vez, aprendi o quanto uma parceria na análise pode gerar chances de novos horizontes. Ele recuperou a confiança em si e aprendeu a escolher melhor: um apartamento, uma namorada, se afastar do grupo dos vícios. Entendeu que era melhor do que imaginava.
Mudar a vida, sonhar também em mudar o mundo são fantasias necessárias para se viver melhor. As mudanças pessoais são importantes, mas vivemos em sociedade, logo não viver indiferente aos problemas sociais. É uma imaginação, mas algo a gente pode pôr em prática. Sempre gostei de participar das manifestações de rua, nelas temos consciência de como a união faz a força. Além do que, sempre se encontram velhos e queridos conhecidos. Três passeatas recentes foram feitas com êxito: uma liderada por mulheres contra o feminicídio, outra em setembro contra o Congresso que defendia a PEC da bandidagem e a última contra anistia aos golpistas. Lutar, tanto pela mudança individual como pela social, melhora a graça de viver, pois caminhar nas ruas por objetivos sociais é terapêutico.
No ano novo que se avizinha, desejo que cada um possa se encontrar consigo mesmo e aprender a cantar por um país mais justo e feminista. (Publicado no Facebook do autor)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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