As intensas movimentações no cenário nacional revelam o quanto avançou a degradação da ordem política estabelecida durante a transição para a democracia. Na década de 1980, a emergência de outros sujeitos sociais na cena política terminou por deslocar atores tradicionais para as novas regras do jogo submetido à concorrência do voto na formação necessária de maioria para governar.
A legitimidade política sustentada na disputa eleitoral forçava a defesa e, por consequência, a consolidação da democracia. Mas na contracorrente democrática e da ascensão dos movimentos sociais, ondas reacionárias e de resistências específicas foram sendo encadeadas com as críticas, em geral, ao projeto de igualdade apontado pela Constituição de 1988.
Afirmavam, cada vez mais por meio do receituário neoliberal, que as medidas governamentais decorrentes do novo marco institucional do país voltadas à melhora socioeconômica da nação, ainda que infrutíferas, gerariam, de alguma forma, o próprio reverso do pretendido. Além disso, elas imporiam enorme custo nacional, colocando em risco o que já se havia conquistado até então.
Diante da construção da nova Constituição em 1988, por exemplo, o presidente Sarney (1985-1990) chegou a declarar que o país havia se tornado ingovernável. Imediatamente, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, rebateu: “A Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. Governabilidade é abjurar, o quanto antes, uma carta constitucional amaldiçoada pela democracia e jurar uma constituição fruto da democracia e da parceria social. A injustiça social é a negação e a condenação do governo.”
Mais de três décadas depois, percebe-se que as forças políticas organizadas em torno da nova ordem política estabelecida pela Constituição de 1988 perderam fôlego, sendo cada vez mais estraçalhadas pelo fortalecimento das elites pré-industriais, contrárias à sociedade de massas. Os conservadores de então não organizaram uma resistência suficientemente forte para impedir as mudanças em direção ao primitivo e trágico passado não industrial do país, no qual há pouco a ser reestabelecido, senão o atraso e o subdesenvolvimento.
Enquanto o conjunto de forças conformadas em torno da Constituição de 1988 buscou modernizar e sustentar a mobilidade social, as elites dirigentes foram se fragmentando a tal ponto de esvaziar seus atributos organizacionais e de coesão política. Do passado da governabilidade do mandato de Sarney assentada fundamentalmente em dois grandes partidos (PFL e PMDB), transitou-se para a casa das dezenas de partidos crescentemente minúsculos e desacreditados pelos eleitores.
Na economia nacional, a desindustrialização empobreceu profundamente a estrutura produtiva e inchou o setor de serviços com ocupações precárias em plena massificação do desemprego. O esvaziamento do potencial da ascensão social, considerada o charme do capitalismo nacional, revela o quanto há de gente sobrando no que ainda resta da sociedade brasileira.
Tudo isso em consonância com mudanças entre os que mandam. De um lado, o enfraquecimento da hierarquia da igreja católica, dos sindicatos de trabalhadores, dos empresários industriais, dos intelectuais públicos, dos movimentos sociais libertários que, entre outros, têm sido, muitas vezes, acompanhados pelo rebaixamento da pauta de lutas, resumida à expectativa eleitoral a se mostrar decrescente, por si só.
De outro, a ascensão da estrutura de algumas igrejas evangélicas, dos proprietários rurais, dos banqueiros, dos intelectuais privados, dos militares enclausurados numa agenda empobrecida e de curtíssimo prazo, dominada pelos negócios da República entre ricos e poderosos.
A atual perda do poder econômico e o enfraquecimento da capacidade do exercício da barganha política das forças sociais que ergueram a Constituição de 1988 parecem fazer das instituições democráticas uma figuração do que já chegaram a ser. Em contrapartida, os que assumem a condição dos que mandam indicam o quanto as reminiscências de tradições da violência do tempo da centralidade do pelourinho estão de volta para a governabilidade do país onde a riqueza não cresce, pois é prisioneira do benefício dos já enriquecidos.