No hospital, o salão sisudo tinha aquele ar melancólico das repartições. De móveis e decoração insossa. Fosse aquele um domingo normal, combinaria com a preguiça das tardes despreocupadas. O ministro destoava do ambiente. Pelo terno e semblante. A movimentação atípica de jornalistas dava à cena o ar de espetáculo.

Cumprimentou com a ênfase dos militares. Os curtos agradecimentos protocolares preparavam o terreno para o que realmente se queria dizer ali. Não vamos fazer marketing! Sentenciou. Uma, duas, três vezes. Talvez, sem se dar conta de que dizer isso na hora H do dia D era um ato de marketing.

Contra-ataque ao inimigo do chefe, em guerra eterna por popularidade. Preocupação demais com o espetáculo é o que resta quando se preocupa de menos com a morte de tanta gente.

Sobrou marketing nas desqualificações absurdas de vacinas que implantariam chips, mudariam o sexo ou converteriam humanos em jacarés. Da apresentação de remédio como se fosse milagroso à oferta a uma ema, todo o espetáculo da hidroxicloroquina foi marketing. Desqualificar a ciência é marketing. Dizer “e daí?” diante da morte de muitos é marketing.

O marketing é um nada. Palavras que geram palavras e desviam olhares. Que ganham aplausos, joinhas ou carinhas feias e unfollows. Para além dele, faltam oxigênio, vacinas, seringas, insumos, leitos, liderança, responsabilidade, vergonha na cara, humanidade. Sobram insanidade, espanto, truculência, tristeza, raiva e cadáveres. Muitos cadáveres.

Marketing é espetáculo. São Paulo fez o seu com choro. O Rio, com o Redentor ao fundo. Cada um postou suas frases de efeito. Até agora, a vacinação é espetáculo. Continuará assim enquanto não houver vacina para todos. Na falta de um espetáculo para chamar de seu. Coube ao general fazer cara feia na hora H do dia D.

A vida tornou-se espetáculo. Em tudo. Nos tornamos seres movidos a imagens e sons. Nas redes e nas ruas. Vestimos e nos emperiquitamos para parecermos algo para outros. Espetáculos de nós mesmos. Imagem que às vezes esconde um eu oposto ao que se mostra.

Muitos sucumbem às imagens de si mesmos e passam a viver o que querem parecer aos outros, à revelia dos próprios sentimentos. Poucas são as coisas que tornam uma vida tão miserável quanto não conseguir ser quem é. Vive-se pela metade. Entre alegrias que não alegram e tristezas que não entristecem, sobra apenas a angústia de querer outra vida. De querer uma vida. Sofre no desgosto de uma existência sem gosto. Existir no espetáculo é “desexistir” nos sentimentos.

Talvez por isso, tanta gente vazia. Vazias de si mesmas. Amantes do vazio. Cúmplices do vazio ao ignorarem duzentas mil mortes porque são apenas número e gráficos. Com as mortes escondidas em hospitais, falta-lhes o espetáculo para serem levadas em conta.

Isto é antigo. Novidade é desistir da vida real para viver só o espetáculo. Como o casal que se mostra feliz e apaixonado nas redes enquanto, entre paredes, há violência, traição e desprezo. Como se imagens fofas compensassem um lar mórbido. Ou como se general com cara de bravo e desculpas esfarrapadas compensasse todo o descaso de um governo preocupado apenas com as próprias hemorroidas.