Lembro de um amigo daqueles cujo comportamento continha um quê de caótico, de inesperado. Soltava comentários completamente aleatórios do nada. Alguns espirituosos o suficiente para nós fazer pensar se estávamos diante de uma pérola de sabedoria ou de uma estupidez exultante. Foi num momento caótico destes, há muito tempo, que ele quebrou o silêncio com um “odeio Natal, fica todo mundo bonzinho…”.
Ri. E quis saber um pouco mais do que ele, naquele momento que só guardava com o Natal o fato de estarmos em dezembro, pensava sobre o Natal e gente boazinha. Não é que ele preferisse viver em um mundo repleto de gente má, perversa, canalha no último grau possível da canalhice. Neste mundo ele já vivia – e ainda vive. O que lhe incomodava, de fato, era essa gente má, perversa e canalha no último grau possível de canalhice parecer boazinha só porque era Natal. Como uma virtude apenas estética e datada. Condenada a desaparecer do vocabulário e atitudes cosméticas para dar lugar novamente às vilanias que governarão os comportamentos pelo resto do ano.
E ainda tinha o lance dos presentes. Da conversão da demonstração de afeto em coisa comprada em três vezes sem juros no cartão que não se sabe bem como pagar a fatura depois. Dá a impressão de que quem não tem grana, não pode demonstrar afeto por falta do veículo afetuoso embrulhado em papel brega multicolorido. Ou de economia afetuosa, quando quem presenteia é podre de rico e dá um presente chinfrim. Fica-se entre o sacrifício, a impotência, o constrangimento e a decepção. Nenhum destes sentimentos deveria ter algo a ver com Natal, pensava meu amigo.
Quais sentimentos deveriam estar na pauta então? Ou, quais sentimentos verdadeiros ele gostaria de ver, de verdade, tomando conta daquelas pessoas que, no geral, lhe aporrinham o resto do ano com suas vaidades, egocentrismos, patéticas e pequenas vilanias? A pergunta fica menos óbvia sendo ele um ateu convicto, daqueles que achariam mais fácil acreditar no Diabo pelas evidências que encontram todos os dias por aí.
Generosidade e respeito, ele disse. Dois valores que parecem ter muito a ver com o aniversariante do Natal. Generosidade, para ele, deveria ser a base da convivência. O alicerce dos nossos encontros. E não a solidariedade de que tanto falam nesta época também. Na solidariedade, ajuda-se na expectativa de ser ajudado. Não seria muito diferente do presentear pela expectativa de ser presenteado também ou, ao menos, para não pegar tão mal se receber algum presente e não ter como retribuir. A convivência não deveria ser regida pela retribuição, mas pela doação gratuita mesmo. Não a doação de coisas embrulhadas, mas a doação de si mesmo na forma de gentileza, de ajuda ou tantas outras atitudes simples e que valem muito mais do que presentes caros e custam muito menos do que uma paçoca.
E o respeito, a capacidade de aceitar o outro pelo que ele é. Meu amigo aleatório sabe que gente má merece punição por suas más ações. Mas ele também sabe que respeito não tem nada a ver com aceitar qualquer atitude, porque não tem nada a ver com fazer alguma coisa, mas com ser alguém. Há tanta gente na sua, quieta, cuidando da própria vida e que é apoquentada por causa da fé que tem ou da que não tem, da camisa que usa, da cor da pele que tem, do quanto se está gordo demais ou magro demais ou de tantas outras formas de ser e estar neste mundo. A essência do desrespeito é não aceitar o ser do outro, do jeito que ele é. Quanto às atitudes, prêmios para as boas e castigos para as más completariam um mundo justo.
Há tempos não vejo este amigo. Não sei se ele ainda odeia o Natal. Mas ainda hoje lembro de nossa conversa. E tenho lembrado dela a todo Natal desde então. Foi um presente que, sem saber, ele me deu. E que custou menos do que uma paçoca.
Feliz Natal!
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler artigos do autor.