A esta altura você já deve ter percebido que o negacionismo científico é um problema sério e que ameaça a nossa sociedade. Só no Brasil, ele pode ser considerado responsável pela morte de cerca de 400 mil pessoas durante a pandemia. Nos Estados Unidos, a situação é ainda pior. Segundo dados divulgados pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention) e pela BBC, apesar dos 700 mil estadunidenses mortos pela epidemia, mais de 30% da população adulta continua se recusando a tomar a vacina contra o coronavírus. Isso pode acarretar centenas de milhares de mortes adicionais totalmente desnecessárias. Lá, com a crescente contaminação nos estados de maioria republicana e onde o “trumpismo” é mais forte, o país ultrapassou novamente a marca de dois mil óbitos diários. Dentre esses, estonteantes 99% são de pessoas ainda não vacinadas, boa parte das quais, por opção.
Esse movimento, importante ressaltar, não diz respeito só a vacinas. Os males do tabaco, dos agrotóxicos, o aquecimento global, a Aids, a teoria da evolução, o holocausto, a forma da Terra e tudo o mais que seja absolutamente consolidado do ponto de vista científico passa a ser alvo da sanha negacionista.
Hoje, embora muita gente ainda encare isso como uma espécie de epidemia de estupidez ou de mau-caratismo, já é claro para cientistas políticos, biólogos, filósofos e psicólogos que estamos diante de algo bem mais complexo. Afinal, seria ingenuidade achar que milhares de pessoas vêm morrendo por Covid diariamente (só nos Estados Unidos) de maneira intencional. Não se trata de um suicídio coletivo republicano nem de mortes causadas por falta de informação. Muito pelo contrário, trata-se de uma séria “doença social” onde a informação falsa é sistematicamente fomentada. Quem sofre desse mal não simplesmente ignora, pois quem ignora não se opõe. Aqueles que estão nessa condição aprenderam erradamente. Jogaram no lixo o saber científico que detinham e adotaram uma outra visão do mundo.
A partir dessa constatação, saltam à mente duas perguntas consequentes: como noções tão equivocadas quanto a da ineficiência das vacinas ou a da terra plana podem substituir conhecimentos já bem estabelecidos em diferentes culturas; e o que motiva quem difunde tais informações falsas.
Incomensurabilidade
Nesse sentido, modelos propostos ao longo da história para entender a estrutura do saber científico têm sido ferramentas úteis também na elucidação da mecânica negacionista. Em particular, as noções de paradigma e de incomensurabilidade propostas por pensadores da ciência como Ludwik Fleck (1896-1961) e Thomas Kuhn (1922-1996) se mostram fundamentais nessa compreensão. Esses autores defenderam que grandes teorias, como a da evolução ou a da relatividade, moldam o entendimento de todos os fatos que nos chegam do mundo e determinam a coerência entre seus conceitos e atributos. O saber se estruturaria, assim, nos chamados paradigmas, que são redes de interdependência entre fatos e conceitos. Por exemplo, o conhecimento das cepas do coronavírus, seu surgimento, dispersão e fixação é alcançado por meio de modelos de biologia das populações, deriva genética e seleção natural. Da mesma forma, modelos e métodos de biologia evolutiva (sistemática filogenética) nos permitem traçar as relações de parentesco entre variantes e determinar, com razoável precisão, as origens do vírus. A teoria da evolução e seu paradigma condicionam, então, boa parte de nossas estratégias de enfrentamento ao vírus assim como todos os conceitos e fatos envolvidos. Fatos deixam, então, de ser objetos presentes no mundo para se tornarem a sua tradução mediante uma ótica específica condicionada ao paradigma de quem o observa.
No caso das narrativas negacionistas, o saber, mesmo sendo equivocado, se estrutura de maneira semelhante. Um poderoso núcleo gravitacional (“teoria negacionista”) deforma todos os fatos que chegam do mundo de modo que eles não somente se ajustem ao núcleo, mas também reforcem suas premissas.
Assim, um simples “fique em casa e espere a vacina chegar” se torna parte de um plano anticapitalista capitaneado por intelectuais e pela mídia. Informações como “a vacina pode provocar efeitos colaterais só em 0,001% dos pacientes”, “a ciência ainda não sabe exatamente por quanto tempo pessoas vacinadas permanecem imunes” e “uma em cada 200 pessoas morre quando contaminada” passam então a ser deformadas, respectivamente, em “a vacina tem efeitos colaterais nocivos”, “as vacinas não têm eficiência comprovada” e “trata-se de uma gripezinha que raramente mata”.
A gravidade exercida por esse núcleo de falácias deforma tanto as informações (fatos) chegadas do mundo e respectivas narrativas que bloqueia a comunicação de seus seguidores com aqueles de outras estruturas de saber, em particular, com narrativas que valorizam a ciência. Ao processo gradual de distanciamento de paradigmas até o ponto de ruptura da possibilidade de entendimento pelas partes Kuhn chamou de incomensurabilidade, cujo significado denuncia o grande problema do sistema. Incomensurável é o que não se mede, não se comunica, não troca.
Isso, que pode ser encarado como uma verdadeira mudança de linguagem, está por trás não somente do negacionismo científico, mas da própria polarização política que hoje observamos no mundo. As narrativas se afastam tanto entre si que não se entendem mais. Essa quebra na comunicação é mais bem entendida quando se observa a deformação dos símbolos e conceitos, como os de liberdade, virtude, legalidade, legitimidade, saber, humanismo, mérito, direito e o da própria bandeira do Brasil. O discurso de nosso presidente na ONU este ano (2021) é um exemplo vivo de nosso estado de incomensurabilidade. Ele foi um vexame histórico para uns e um sucesso extraordinário para outros.
Hiper-realidade
Mas a formação de paradigmas e a incomensurabilidade não explica tudo e muito menos os modelos explicativos do assunto se limitam a isso. Se optamos por entender o negacionismo científico usando as abordagens propostas pelos filósofos especializados na pós-modernidade, o diagnóstico pode ser um pouco diferente do descrito acima. Essas estruturas apareceriam como uma espécie de pós-verdade. Por exemplo, usando os referenciais do influente pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007), a narrativa negacionista poderia, via propaganda, se distanciar tanto do mundo que perderia contato com a realidade. Seus seguidores passariam a compartilhar um mundo hiper-real, com vida própria.
A grande diferença dessa abordagem em relação à anterior é que naquela os fatos vêm da realidade e são deformados pelo paradigma, enquanto aqui os fatos são criados na própria hiper-realidade. Para ser mais claro, o tipo de narrativa anterior é criado à base de falácias, ao passo que o mundo hiper-real se nutre de mentiras (fake news) ou ilusões. O vírus é comunista e veio para destruir o capitalismo global, enquanto a vacina chinesa carregaria um microchip indutor de uma mudança genética de sexo e tendência política.
Pesquisa conduzida por cientistas da USP e da UNESP e publicada na revista Matrizes mostra essa condição de maneira dramática. Ao reproduzir dados de relatórios globais anuais como o Digital News Report e o Edelman Trust Barometer, o artigo mostra que o Brasil vem ocupando a liderança no ranking das nações em que a população mais se diz apreensiva por não saber discernir o que é real e o que é falso na internet. Ao todo, 84% dos brasileiros se afligem com o assunto. Além disso, a grande maioria dos entrevistados teve acesso a notícias falsas sobre o ex-prefeito de São Paulo e candidato à presidência em 2018, Fernando Haddad. Dentre essas, destaca-se que este implementaria o “kit gay” em escolas públicas (74%), que ele chamaria o deputado Jean Wyllis para ser ministro (46%), e que o candidato teria defendido a pedofilia e o incesto em seus livros (44%). Interessante notar que o artigo revela que esses percentuais são ainda maiores dentre os eleitores de Bolsonaro, evidenciando a eficácia das bolhas na fixação de hiper-realidades, no caso, a instauração de uma espécie de “ditadura gay”, que encheu de pânico boa parte dos conservadores. Esse tipo de realidade paralela explica também o forte engajamento dos militantes de extrema direita. Literalmente, eles realmente acreditaram ter o “cu na reta”.
Nesse contexto específico, a enigmática defesa de teses absurdas, como o terraplanismo, se revela como um elemento fundamental por criar a sensação supracitada de perda total de credibilidade em qualquer referencial de saber. Se a ciência for vista como incapaz de determinar a forma da Terra, que dirá de um vírus microscópico! Fomenta-se, assim, uma espécie de niilismo onde nada é certo e, portanto, tudo é possível. Quem acredita que a Terra é plana está preparado para acreditar em qualquer narrativa, virando presa fácil dos lobos da internet.
Escapismo
Falta falar, entretanto, se há algum modelo que explique os grupos que, organizadamente, fomentam o negacionismo espalhando as mentiras na rede. Nesse sentido, uma terceira perspectiva ou prisma através do qual se pode olhar o fenômeno negacionista nos chega pelas palavras do antropólogo francês Bruno Latour (74 anos). Em outros termos, esse filósofo defende que a palavra negacionista não reflete nem a magnitude, nem a intencionalidade e muito menos a malignidade do problema, que ele prefere chamar de escapismo.
Se optarmos por usar as suas lentes, o problema sequer seria a incomensurabilidade ou a hiper-realidade, como exposto nos modelos anteriores, mas sim algo similar a um conflito de classes ou castas, em uma leitura aproximadamente marxista. Tal qual um bando de gafanhotos, nesta perspectiva um grupo se acostuma a explorar recursos naturais e humanos de um determinado local para depois escapar do problema, deixando um cenário de terra arrasada para trás. Esses embarcam também em um processo similar a uma autoilusão onde se acredita na possibilidade de, por exemplo, devastar o planeta e escapar ileso, quem sabe, colonizando outro planeta. Esse entendimento ganhou bastante força com o crescimento, durante a pandemia, das viagens espaciais que levavam bilionários a bordo e do mercado de congelamento de corpos para “ressuscitação” futura.
Outro paralelo perfeitamente possível é o de atribuir a este mundo real em que vivemos o atributo de ilusório, ao passo que se confere realidade ao mundo pós-morte, em uma inversão muito conveniente às classes dominantes. Também é fácil aplicar esse modelo de entendimento àqueles empresários que destroem os recursos naturais de seus países com a certeza de se refugiarem fora deles quando a situação se inviabilizar.
A culpa que recai sobre os escapistas seria, então, necessariamente, muito maior que aquela que acomete os negacionistas capturados nas armadilhas dos dois modelos anteriores. Neste, ilusões de cura, como a cloroquina, a ivermectina e o tratamento com ozônio no ânus, são maquiavelicamente disseminadas para manter o clima de normalidade útil ao capital. No caso da Prevent Senior, os senadores da CPI da Covid já se depararam com essa dura realidade.
Por fim, além desses modelos, há dezenas de explicações mercadológicas, psicológicas, fisiológicas e até zoológicas de nossa negação da realidade, como a sensação psicológica de pertencimento a grupos e a liberação de dopamina, que parece ser comum em grupos que defendem teses conspiratórias.
Infelizmente, entretanto, a questão não pode ser tratada de maneira reducionista. Tudo indica uma natureza plural e multifacetada do fenômeno e, como tal, também deve ser explicado por uma pletora de modelos e óticas. Só assim poderemos combater o fenômeno como um todo, de uma ponta a outra do espectro. Talvez devamos fazer como os microbiologistas que, para terem uma descrição mais perfeita das células de um tecido, usam ora o microscópio ótico, ora o de varredura, ora o eletrônico, de acordo com a exata camada que desejam acessar.
Escapistas, em sua fuga da realidade e do cotidiano, negam a destruição ambiental e o aquecimento global para não precisarem abandonar seu escancarado plano de usar nossos recursos até esses minguarem. Da mesma forma, fomentam a promessa ilusória de que poderemos, depois de arrasar nosso planeta, começar tudo novamente em outro local ou em outro tempo. No que diz respeito à Covid, negam a doença e apostam na desinformação para que seus “hospedeiros” continuem trabalhando normalmente e gerando seus dividendos. Dopamina, pertencimento, recalque, interesse, um conjunto de fatores outros atuam como motivação para se permanecer crendo em narrativas tão estapafúrdias como a da ineficácia das máscaras no combate a uma enfermidade que contamina pelas vias aéreas. Conseguem, a partir daí, blindar suas narrativas na deformação kuhniana dos fatos e conceitos de modo a extinguir as culpas que, eventualmente, lhes privariam do reino dos céus, sua derradeira escapada. Por fim, são iludidos pelo próprio circo. Exilados em um mundo hiper-real, acabam acreditando em seu conto e se tornando vítimas de sua própria criação, frequentemente, negando o óbvio até o último momento antes de serem intubados.
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