A literatura especializada identifica dois grandes períodos na história recente da economia mundial: o primeiro abrange os anos 1945-75 e o segundo se estende de 1990 até os dias atuais. Mais: ela carimba as três primeiras décadas com o rótulo keynesiano e as três últimas com o neoliberal. De outro modo: tal literatura associa esses dois blocos de décadas, respectivamente, à intervenção estatal e ao livre mercado. Assinale-se ainda que enquanto os 30 anos iniciais foram marcados pelo crescimento da renda, pelo aumento do emprego, pela construção de um pacto social-democrata etc., os últimos, dentre outros aspectos, o são pelo baixo dinamismo econômico, pela piora das condições de vida da maioria da população e pela regressão das sociabilidades civilizatórias.

Para melhor comparação com o período Neoliberal, consideremos a Era Keynesiana. Como se sabe essa designação aponta para o nome do economista J. M. Keynes, visto que as intervenções em tela foram não apenas defendidas por ele como tornadas dominantes no período 1945-75. Ou seja: formou-se naqueles anos o consenso de que essas intervenções seriam o único antídoto capaz de fazer frente a um capitalismo que tenderia a dramáticas instabilidades macroeconômicas – como ocorreu em 1929 – se deixado ao sabor das forças de mercado.

Quais seriam então as medidas a adotar para que a economia funcionasse pelo menos a contento? Elas iriam desde o estabelecimento de políticas monetárias e fiscais anticíclicas, passando pela construção de um pacto de corte social-democrata até a construção de um ordenamento internacional que estimulasse o desenvolvimento econômico (Banco Mundial) e socorresse os países-membros que incorressem em problemas de balanço de pagamento (Fundo Monetário Internacional). Portanto, além da preocupação com o crescimento da renda e do emprego, as políticas keynesianas miravam a construção de uma ordem mundial tanto mais estável quanto civilizada – a respeito desse último aspecto vide a defesa que Keynes fazia da participação ‘a maior’ dos trabalhadores na renda nacional. Ademais, tenha-se em conta que essas orientações, convertidas em políticas de governo, em especial no centro capitalista, foram bem sucedidas.

E as práxis liberais que sucederam a Era Keynesiana? Antes de responder a essa pergunta, vale anotar dois aspectos: o primeiro, é que elas ganharam corações e mentes mundo afora apenas a partir do chamado Consenso de Whashington, de 1989; e o segundo, é que os economistas neoclássicos formularam diversos “papers” com traços específicos sobre os temas em exame no período que vai da entrada dos anos 1970 até o ano acima assinalado. Não obstante, dados os propósitos desta reflexão, deixemos de lado esses aportes e suas especificidades na medida em que eles não se afastaram do seu núcleo teórico duro: o velho liberalismo econômico e o ‘sacrossanto’ mercado. Isto posto, vejamos o diagnóstico (neo)liberal da crise manifesta a partir do final do período keynesiano e as propostas formuladas para seu enfrentamento.

No que trata do primeiro aspecto, ele consistiu basicamente na atribuição de todas as culpas às políticas intervencionistas antes prevalecentes e, principalmente, ao aumento do gasto público e ao enrijecimento do chamado mercado de trabalho. No caso do aumento desse gasto, os liberais defendem que ele teria sido realizado sem as devidas disponibilidades no orçamento público (para bancar o conjunto de políticas sociais até então pactuadas pela social-democracia no poder). No caso do enrijecimento do mercado de trabalho, eles afirmam que os direitos trabalhistas estabelecidos constrangeram os lucros empresariais e consequentemente suas decisões econômicas.

Cotejadas as despesas públicas com a renda nacional, de fato os liberais tinham razão quanto ao déficit público, como também o tinham quando considerada a margem de lucro das empresas, tendo em conta a relação da receita obtida com o custo de produção (em particular, o atinente à mão de obra). Todavia, mesmo sem discutir os vícios de raciocínio embutidos nesses diagnósticos (e eles são muitos…), assinalo duas perguntas para exame em artigo futuro: por que de 1945 até parte dos anos 1960 esses problemas não operaram enquanto obstáculos para o crescimento econômico?; e, por que será que os liberais até hoje não se ocuparam para valer com as críticas que questionam suas explicações sobre as causas dos apontados déficit público e compressão dos lucros?

No que trata do segundo aspecto, o das propostas, ele consistiu essencialmente na troca de sinal da política econômica (e social). Em linhas gerais, elas foram as que seguem: a) que os custos do pacto social-democrata deveriam ser eliminados delegando para as pessoas, de acordo com as suas disponibilidades, esforços e méritos, acessarem os até então denominados direitos sociais; b) que o mercado de trabalho fosse flexibilizado outorgando sua regulagem ao livre mercado de mão de obra (para a determinação das remunerações a serem pagas/auferidas, bem como do volume de emprego); c) que as intervenções anticíclicas monetárias e fiscais fossem canceladas também deixando que o mercado se encarregasse dessas matérias; e, d) que teria chegado o momento de o desenvolvimento ser conduzido por indivíduos empreendedores e empresas privadas. Numa expressão-síntese: Mais Mercado e Menos Estado.

Porém, passados 30 anos de práxis neoliberais, a economia mundial continua apresentando baixo crescimento, flutuações abruptas da renda nacional, cavalar desemprego, piora das condições de vida da imensa maioria da população, brutal degradação das condições de sociabilidade/civilidade etc. Logo, inevitável perguntar: onde está o problema? Numa primeira aproximação se pode dizer que os pressupostos do modelo de análise – portanto, já na partida – ajudam a explicar o fracasso socioeconômico apontado. E.g., a tese de que o mercado baseado na livre concorrência, na racionalidade dos agentes econômicos, na negação do papel das expectativas empresariais, na igualdade de proprietários de fatores de produção no mercado, na neutralidade da moeda, no orçamento equilibrado etc. tudo resolveria é absolutamente inconsistente com o mundo real.

Tal inconsistência entre teoria e mundo real resulta ainda mais nítida quando consideramos que esse último é inimaginável sem as suas classes polares (capitalistas e trabalhadores), a lógica da valorização do capital, a mudança tecnológica (e a concentração do capital), a centralização do capital (e os oligopólios), o dinheiro enquanto ativo e expressão de relações sociais de poder, a interveniência do fator tempo nas decisões econômicas etc. – temas esses, por suposto, ausentes nas formulações neoclássicas em geral e nas neoliberais em particular.

Resumidamente: examinar uma economia/sociedade com os assinalados pressupostos liberais é tão surreal quanto o é desconsiderar qualquer um dos elementos constitutivos que vieram de ser alinhados no parágrafo anterior, posto que esses procedimentos descaracterizam a ordem societária em análise!

Mais amiúde, também se pode dizer que o liberalismo é reprovado no teste da realidade, pois: a) em sociedade ‘assimétrica’ como o é o capitalismo, sobretudo na periferia mundial, não há como a maioria das pessoas acessarem saúde, educação, previdência social etc. por elas mesmas por conta das suas distintas e estruturais inscrições no processo de produção e apropriação da renda; b) supor que a negociação entre patrões (poucos e organizados) e empregados (muitos e no geral desorganizados) é uma relação de iguais mostra-se completa tonteira e mesmo manifesta covardia social; c) igualmente se mostra equivocado abrir mão das políticas monetárias e fiscais anticíclicas que podem fortalecer mercados internos, redes de proteção social e macro-regulagens internacionais – até porque diferentemente da tese neoclássica nada está garantido “ex-ante” (e muito menos seu decantado pleno-emprego); e, d) a entrega do destino da humanidade nas mãos do setor privado que não tem como e nem deve conduzi-la, pela sua natureza mesmo (dedicado a fazer do dinheiro mais dinheiro, dada a concorrência), é outro completo desvario…

Não fora suficiente, como dissemos em artigo já publicado no Terapia Política, não há registro na história do capitalismo (de aproximados 250 anos de existência) de qualquer ciclo sustentado de desenvolvimento econômico que não tenha sido alavancados por políticas governamentais.

A verdade é que as práxis aqui examinadas tentam diuturnamente mistificar o mundo real e, “pari passu”, ‘vender’ a ideia de que a instauração do livre mercado prescrito por uma suposta Ciência Econômica seria uma solução técnica. Assim sendo, elas expressam tanto a sua natureza farsesca quanto autoritária (como se pairassem acima do mundo “dark” da política). Além disso, não subsistem teoricamente, não aderem à realidade e são congenitamente perversas e desestruturantes de todos os planos da vida social – não à toa apenas produzem baixo crescimento (quando não crise mesmo) e disseminado sofrimento social.