A Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, com 17 Objetivos e 169 metas acordadas por mais de 180 países, tem como um de seus principais lemas “não deixar ninguém para trás”. Isso significa que as metas constantes da Agenda devem ser monitoradas e alcançadas por todas as pessoas, em todos os grupos populacionais. É o avançar para além das médias e entender que grupos excluídos e marginalizados dos processos de desenvolvimento e crescimento econômicos precisam ser considerados na formulação de políticas públicas se o objetivo for o desenvolvimento sustentável e harmonioso entre pessoas e planeta.
Mas, quais são esses grupos historicamente “deixados para trás”? De acordo com a própria Agenda 2030, são mulheres e meninas, residentes em áreas rurais, povos indígenas, minorias étnicas e lingüísticas, pessoas com deficiência, migrantes, minorias de gênero e sexuais, jovens e idosos. Construir um sistema estatístico que seja capaz de produzir informações com esse grau de desagregação dos dados é um imenso e inescapável desafio a ser enfrentado nos próximos anos e isso se estende aos já tradicionais indicadores de mercado de trabalho.
O Objetivo 8 da Agenda 2030, por exemplo, é ambicioso nesse sentido e estabelece algumas metas com vistas a monitorar a promoção do “crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, com trabalho decente para todos”. Entre alguns dos indicadores propostos constam a proporção de trabalhadores em atividades informais (por setor e sexo), o salário médio por hora (por ocupação, idade e pessoas com deficiência); a taxa de desocupação (por sexo, idade e pessoas com deficiência); e a proporção de jovens (15-24) que não estão na força de trabalho (ocupados e não ocupados), não são estudantes e nem estão em treinamento para o trabalho.
Cabe esclarecer que todas as definições conceituais e cálculos dos indicadores de mercado de trabalho que o IBGE divulga seguem recomendações internacionais referendadas em guias e convenções coordenados pela Organização Internacional do Trabalho, de forma que os dados sejam harmonizados, similarmente coletados e a comparabilidade entre países seja possível.
Na principal fonte de informação sobre o mercado de trabalho brasileiro, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), para identificar se uma pessoa está ocupada, por exemplo, investiga-se se a pessoa trabalhou ao menos uma hora na semana de referência como empregada (setor público ou privado, com ou sem carteira), trabalhadora doméstica, empregadora, conta-própria ou auxiliar na família; não importando, portanto, se com ou sem remuneração, se com ou sem vínculo formal de trabalho.
O desocupado ou desempregado, por sua vez, deve, além de não estar ocupado conforme definição anterior, ter procurado trabalho nos últimos 30 dias e estar disponível para trabalhar na semana de referência. A FORÇA DE TRABALHO (FT) é, então, a soma de ocupados e desocupados e a TAXA DE DESOCUPAÇÃO é medida pela proporção de desocupados ou desempregados na força de trabalho.
Nesse sentido, a estratégia de quebrar o termômetro para fazer a febre desaparecer é inócua e a “culpa” de existir desemprego não reside no método de medição, conforme, mais de uma vez, o atual governo federal tentou alardear.
Em 2019, a população na força de trabalho totalizava mais de 107 milhões de pessoas, sendo quase a metade (47,5%) adultos entre 30 e 49 anos e 28,9% jovens de 14 a 29 anos. Considerando a desagregação por sexo e cor ou raça, predominavam homens (55,1%) e pretos ou pardos (55,4%). Entre os ocupados formais, adultos homens brancos eram maioria, mas, entre desocupados, o perfil muda e mulheres (54,5%), pessoas de cor/raça preta ou parda (64,8%) e jovens (53,9%) apresentavam as maiores taxas de desocupação. Esse também é o perfil prevalecente entre aqueles ocupados informalmente. O salário médio por hora de mulheres, jovens, pretos ou pardos, residentes em áreas rurais e pessoas com deficiência também se mostram sistematicamente inferiores às suas contrapartes (homens, adultos, brancos, urbanos e sem deficiência).
A análise desagregada comparativa dos principais indicadores de mercado de trabalho, portanto, não deixa dúvidas sobre os desafios colocados pela Agenda 2030 e o seu “não deixar ninguém para trás”. Crises econômicas tendem a aumentar vulnerabilidades e a exclusão daqueles que já apresentam uma inserção laboral mais precária e instável. Não foi diferente com a crise resultante da pandemia da Covid-19, na qual as desigualdades estruturais do mercado de trabalho brasileiro foram ainda mais aprofundadas.
A taxa de participação no mercado de trabalho mede quantas pessoas estão na força de trabalho entre aquelas em idade de trabalhar. Ao final de 2019, essa taxa era de 62%, com importante diferença de 19 pontos percentuais entre a participação de homens (72%) e de mulheres (53%). No segundo e terceiro trimestres de 2020, as taxas de participação atingiram seu menor nível histórico com recuperação muito discreta no último trimestre (67% para os homens e 48% das mulheres). Ou seja, ao final de 2020 menos da metade das mulheres em idade de trabalhar estava de alguma forma ativa no mercado de trabalho, sejam ocupadas em atividades formais ou informais, sejam na condição de desocupadas a procura de trabalho e disponíveis para trabalhar.
Por sua vez, a taxa de desemprego, que em 2019 foi de 11,7%, também esconde variações internas significativas. Entre os mais jovens, a taxa quase dobrou (21,8% para pessoas entre 14 e 29 anos); foi de 14,1% para as mulheres (em contraste com 9,6% para os homens); e de 13,6% para pretos ou pardos (contra 9,2% para brancos). No último trimestre de 2020, as taxas de desocupação foram de 16,4% para as mulheres e de 11,9% para os homens.
Ao longo dos meses, muitos se espantaram que a taxa de desocupação tivesse permanecido relativamente estável, havendo movimentação ascendente mais significativa apenas nos dois últimos trimestres com o relaxamento das medidas de distanciamento social. A explicação passa inicialmente pelo entendimento dos conceitos. A paralisação de diversas atividades econômicas e o medo de contaminação pelo coronavírus, aliados ao recebimento do Auxílio Emergencial, contribuíram para que muitas pessoas adiassem a decisão de buscar novas colocações de forma que, ao perderem suas ocupações, essas mesmas pessoas não se tornaram desocupadas, mas passaram a compor o contingente de pessoas fora da força de trabalho. De fato, houve um aumento de mais de 11 milhões de pessoas nessa condição entre o final de 2019 e o final de 2020, principalmente mulheres que eram 65% desse total.
Um dos principais fatores explicativos para a menor participação das mulheres no mercado de trabalho diz respeito à sobrecarga delas com a realização de trabalho doméstico não remunerado, que pude discutir mais detidamente em dois artigos aqui no blog (Mulheres e o Teto de Vidro e O Trabalho Doméstico no Pós Pandemia). Essa responsabilidade desproporcional com a casa e o cuidado com os demais membros familiares limita as possibilidades de uma inserção mais qualificada no mercado de trabalho, o acesso a cargos de liderança, melhores remunerações e condições de igualdade na disputa de vagas, não obstante as mulheres, em média, serem mais escolarizadas que os homens.
Ao combinar as horas dedicadas ao trabalho remunerado àquelas dedicadas aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, as mulheres detinham uma carga total de trabalho semanal de 54,3 horas contra 51,2 horas dos homens (IBGE, 2021). O Relatório “Tempo de Cuidar” da filial brasileira da organização da sociedade civil Oxfam estimou que “o valor monetário global do trabalho de cuidado não remunerado prestado por adolescentes e mulheres na faixa etária dos 15 anos ou mais é de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano – três vezes mais alto que o estimado para o setor de tecnologia do mundo”. Ou seja, é o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres, situado fora da lógica do mercado, que permite ao capital explorar a mão de obra a um custo muito baixo, justamente porque não remunera quem a produz. Um insumo fundamental de trilhões de dólares apropriado e embolsado anualmente pelos donos do capital. Moral da história: como alertam diversas estudiosas marxistas feministas, entre elas Silvia Federici, (autora de Calibã e a Bruxa), “isso que chamam de amor é trabalho não pago”.
Diante desse quadro, pode-se imaginar o impacto da pandemia e do distanciamento social forçado sobre as mulheres e, em especial, as mais vulneráveis. Para além de todos os membros familiares em casa ao mesmo tempo, as mulheres se viram, de uma hora para outra, sem redes de apoio institucionais (creches, escolas, centros de integração) e pessoais (empregadas domésticas, mães/avós, vizinhas) para exercer um trabalho não remunerado multiplicado e exponenciado que, para parte delas, deveria ainda ser conciliado com as atividades remuneradas de trabalho remoto. Para outras, a maior sobrecarga foi conciliada com a incerteza do desemprego e com a impossibilidade de buscar novas ocupações frente às indefinições proporcionadas pela desastrosa gestão brasileira da pandemia e a permanência indefinida de crianças fora das escolas.
Essa é uma pequena amostra do tamanho do desafio que o Brasil precisa enfrentar em direção a um mercado de trabalho mais inclusivo e equitativo, considerando apenas a perspectiva de gênero. Políticas específicas de promoção de trabalho decente precisam se dar de forma integrada a políticas sociais protetivas, em especial, aquelas concernentes à socialização dos custos de cuidado que, em última instância, remetem à reprodução da própria força de trabalho, hoje fundamentalmente a cargo (não remunerado) das mulheres.
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