Black lives matter. Vidas negras brasileiras importam. Importam o suficiente para a defesa das políticas públicas de desenvolvimento e de proteção social que são redutoras de desigualdades, principalmente raciais? Essa é a pergunta quando o racismo se escancara, mais uma vez, aos olhos de todos, mesmo daqueles que normalmente se recusam a ver. João Alberto, Miguel, Jéssica, Marielle, quantos mais? A pergunta tem resposta. Em 2018, de cada 10 pessoas assassinadas no país, oito eram negras. Quarenta e quatro mil pessoas negras perderam suas vidas vítimas de homicídio, sendo 23 mil homens entre 15 a 29 anos de idade. Um jovem negro tinha, então, três vezes mais chances de morrer assassinado que um jovem branco, segundo dados do Datasus e do IBGE.

Nomes e números. É importante lembrarmos os nomes, porque são pessoas que tiveram suas vidas interrompidas, deixaram filhos órfãos, pais desconsolados, companheiras viúvas, realizações, sonhos. Mas é importante conhecermos também os números, porque a violência, a desigualdade e o racismo são regra, não exceção – ao contrário do que dizem certas autoridades.

Reconhecer o racismo e identificar como ele se materializa nas condições de vida da população é fundamental para a compreensão e a transformação da sociedade em que vivemos. Sociedade forjada, entre outros fatores, a partir do fenômeno da escravidão massiva de povos africanos, trazidos à força a fim de gerar, sem qualquer compensação, renda e riqueza para os brancos que aqui viviam. Crime que não foi reparado.

A população negra está sobre-representada como vítima da violência e sub-representada no acesso a direitos básicos, ao contrário do observado para a população branca. Dados recentemente divulgados na Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE, indicam que, embora representassem pouco mais da metade da população brasileira (56,3%), as pessoas pretas ou pardas – denominação utilizada pelo Instituto – correspondiam a 77,5% da população em extrema pobreza no ano de 2019. Ou seja, viviam com menos de R$ 151 reais por mês. Além disso, sete de cada 10 pessoas que viviam em domicílios sem banheiro exclusivo, paredes externas de materiais não duráveis, com mais de três moradores por quarto, com mais de 30% da renda familiar comprometida com o aluguel ou sem documento de propriedade eram pretas ou pardas. O estudo retrata a desigualdade também em outros temas.

No mercado de trabalho, do qual se obtém a principal fonte de rendimento familiar, a desvantagem para as pessoas pretas ou pardas é notada em praticamente todos os indicadores. Na informalidade, esse grupo populacional corresponde a 62% dos trabalhadores. Nas atividades econômicas cujas remunerações são inferiores, como as de serviços domésticos, construção ou atividades agrícolas, os trabalhadores pretos ou pardos são largamente preponderantes. O desemprego, bem como a incidência de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas também recaem com mais ênfase neste grupo vis-à-vis a população branca. Enquanto o rendimento médio era de R$2.884 mensais para a população branca, para pretos ou pardos correspondia a apenas R$1.663 em 2019. Um padrão ainda mais preocupante porque verificado mesmo na comparação por hora trabalhada e entre trabalhadores com o nível superior completo – os brancos recebiam 45% a mais do que os pretos ou pardos nesta categoria.

As desigualdades educacionais se manifestam desde o ensino fundamental, se aprofundam no ensino médio e atingem seu ápice no ensino superior. Em 2019, mais da metade dos jovens não estavam estudando mesmo sem ter concluído o nível superior e, entre eles, 70% eram pretos ou pardos, que interromperam os estudos principalmente por terem de trabalhar. Apesar disso, vem crescendo, ainda que lentamente, a frequência de jovens pretos ou pardos de 18 a 24 anos no ensino superior, bem como o percentual da população preta ou parda com esse nível completo, que chegou a 11%, em 2019, ao passo que para a população branca alcançou 25%.

Pretos ou pardos são mais de 60% dos estudantes da rede pública nos ensinos fundamental e médio e são metade dos estudantes da rede pública no ensino superior. Expandir e qualificar a rede pública, bem como ampliar as políticas de democratização do acesso e de permanência estudantil são rotas necessárias para a redução de desigualdades educacionais, que, por sua vez, exacerbam as desigualdades no mercado de trabalho. Ampliar o Estado faz a diferença.

Em tempos de pandemia, é relevante também destacar as desigualdades no acesso à saúde e a importância do Sistema Único, público, universal e gratuito. Quase 40% das pessoas brancas reportaram à Pesquisa Nacional de Saúde 2019, do IBGE, possuir plano de saúde, enquanto entre pretos e pardos a resposta afirmativa cai para perto de 20%. Pessoas brancas também tiveram mais acesso a consultas médicas, odontológicas e a medicamentos receitados. Por outro lado, pessoas pretas ou pardas tiveram mais internações em hospitais do SUS e foram as que mais conseguiram pelo menos um medicamento em serviço público de saúde.

Infelizmente, nos últimos anos a ameaça a direitos básicos universais segue em marcha acelerada no Brasil. Na medida em que ataques à Constituição Cidadã vêm sendo realizados, como a aprovação de uma esdrúxula Lei que restringe o gasto público – e aqui leia-se: as despesas de pessoal, de investimentos e de custeio em todas as áreas do serviço público, incluindo a saúde e a educação; é a população negra que é majoritariamente prejudicada. Ou ainda, com a reforma trabalhista do final do governo Temer, que permitiu a precarização dos empregos; ou a reforma Previdenciária, no primeiro ano do governo Bolsonaro, que dificultou o acesso à aposentadoria justamente dos trabalhadores que começaram sua vida laboral mais cedo e que foram, ou são, informais.

Políticas públicas afirmativas, como as diferentes leis de cotas, mas também os gastos públicos aplicados na educação, na saúde, nos programas sociais, na habitação, na cultura ou sob a forma de outros investimentos que geram trabalho e renda beneficiam a todos, mas sobretudo os mais pobres e, por conseguinte, os negros. Por outro lado, as políticas de “austeridade” fiscal ou de “estado-mínimo”, reconhecidas por sua irresponsabilidade social, no Brasil, representam a antítese das políticas antirracistas, pois sucateiam áreas de provisão pública vitais para a qualidade das condições de vida e de reprodução da população, ampliando as desigualdades. Abordagem semelhante vem sendo amplamente defendida pelo professor, filósofo e jurista Silvio Almeida, referência no combate ao racismo estrutural.

É com esta institucionalidade e resultados que chegamos ao final de 2020 e entraremos em 2021, em pleno recrudescimento da pandemia. A crise sanitária e econômica atinge mais intensamente os mais vulneráveis e é nítida a sua cor ou raça. Diante deste contexto e momento, urge atacar o racismo na sociedade brasileira, combatendo-o também em uma de suas bases, o receituário econômico que atua no sentido de conservar as desigualdades sociais e raciais. Afinal as vidas negras brasileiras importam.