No infernal calor de Porto Alegre em janeiro de 2001, o campus da PUC e as ruas da cidade foram tomados por mais de 20 mil pessoas, com sotaques de todo o país e idiomas de 117 países. As roupas coloridas, adereços artesanais, bandeiras e faixas significavam o propósito desse encontro, até então inédito no mundo: “Um outro mundo é possível”. A data escolhida apontava para seu propósito: estabelecer um contraponto ao Fórum Econômico Mundial, encontro anual da elite econômica e política mundial do sistema capitalista globalizado, na gelada Davos, Suíça, formulador da teoria e da prática da dominação do mundo pelo capital.

O encontro representou também um passo adiante à oposição simbolizada pela Batalha de Seattle. A partir de 30 de novembro de 1999, por quatro dias 50 mil manifestantes bloquearam as reuniões da Organização Mundial do Comércio, em Seattle, Estados Unidos -, que formalizaria acordos de livre comércio na agricultura e serviços, inclusive sobre patentes e propriedade intelectual. A polícia reprimiu violentamente, mas ainda assim não conseguiu impedir que milhares de estudantes, ecologistas, feministas, camponeses, agricultores, ativistas de direitos humanos inviabilizassem a “Rodada do Milênio”.

Ao redor do mundo, cresciam movimentos de resistência aos resultados danosos do neoliberalismo e de sua globalização sobre a vida, o ambiente e o trabalho. No ano seguinte à Batalha de Seattle, ativistas brasileiros e dirigentes de ONGs daqui buscaram apoio do diretor do jornal francês de esquerda Le Monde Diplomatique, Bernard Cassen, para organizarem uma reunião mundial de movimentos sociais anti neoliberais.

Um dos iniciadores, Francisco Whitaker contou que Oded Grajew formulou a proposta da realização de um encontro “de dimensão mundial e com a participação de todas as organizações que vinham se articulando nos protestos de massa, voltado para o social – o Fórum Social Mundial. Esse encontro teria lugar, para se dar uma dimensão simbólica ao início dessa nova etapa, nos mesmos dias do encontro de Davos em 2001, podendo a partir daí se repetir todos os anos, sempre nos mesmos dias em que os grandes do mundo se encontrassem em Davos”.

Assim nasceu o Fórum Social Mundial, que se constituiu como um encontro mundial não apenas de oposição ao neoliberalismo e ao capitalismo em geral, mas para construir alternativas viáveis de outro mundo, solidário e fraterno, em que a economia estivesse a serviço do ser humano, e não o inverso.

Porto Alegre, administrada pelo Partido dos Trabalhadores desde 1989, foi escolhida para sede do FSM por ser, então, a cidade referência mundial na participação democrática na gestão governamental – sua marca principal, o Orçamento Participativo, tinha parte da dotação Investimentos decidida através de assembleias populares em todas as regiões da capital. O prefeito Raul Pont e o governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, apoiaram imediatamente a iniciativa da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, Associação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos, Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania, Central Única dos Trabalhadores, Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas, Centro de Justiça Global e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Como parte da programação do Fórum Social Mundial Virtual 2021, neste 25 de janeiro a Carta Maior organizou cinco mesas virtuais, com o tema “Resistência democrática, comunicação, desigualdades e violência”. Uma delas foi esta fala que aqui transcrevemos, A sociedade global pós-pandemia, de Noam Chomsky, participante do Fórum desde a primeira edição e seu decidido apoiador.

A Sociedade Global Pós-Pandemia
Noam Chomsky

A primeira vez que eu participei do Fórum Social Mundial em Porto Alegre foi há 20 anos. Foram dias de grande exuberância, vitalidade, empolgação, expectativa e integração entusiástica entre os participantes, todos unidos na crença de que Um Outro Mundo é Possível e comprometidos a criar esse outro mundo.

O Brasil estava equilibrado para entrar na chamada “Década dourada” – uma frase usada pelo Banco Mundial, numa avaliação retrospectiva dos anos dos governos Lula -, num momento em que o Brasil talvez tenha sido um dos países mais respeitados do mundo e uma voz eloquente na defesa do Sul do globo, sob a liderança do presidente Lula e de Celso Amorim, seu ministro das Relações Exteriores.

Eu e minha esposa vivemos no estado do Arizona, nos Estados Unidos, campeão mundial de infecção per capita pela Covid. Enquanto eu falo aqui, a principal manchete do New York Times é a seguinte: ‘Os hospitais não têm mais estoques de vacina’, referindo-se a todos os Estados Unidos. Os funcionários da Saúde estão frustrados, enquanto o vírus está matando milhares de pessoas a cada dia. Os hospitais não têm mais leitos e as pessoas estão morrendo nos corredores. Isto no país mais rico do mundo!

O meu estado natal, a Pensilvânia, tem mais ou menos a mesma população que Cuba. Mas tem 100 vezes maior número de óbitos causados por Covid: 20 mil, comparados aos 200 de Cuba. As taxas de morte por Covid na cidade de São Paulo são 100 vezes maiores que as de Cuba como país.

Uma análise mundial parece indicar que os principais fatores para dominar a catástrofe têm sido um governo efetivo, agindo para o bem estar de sua população, combinado com um espírito de cooperação e de uma mentalidade coletiva de cooperação. Nós todos estamos nisso juntos, para o bem comum.

É muito útil olhar de perto quem tem os piores desempenhos. Eu vou deixar de lado o Brasil, porque é muito deprimente examinar o caso do Brasil agora. Estados Unidos e Inglaterra, ambos com registros horríveis, em contraste com o fantástico desenvolvimento econômico e privilégios de que eles usufruem. Eles são os lares dos programas neoliberais que varreram o mundo nos últimos 40 anos. Essas doutrinas neoliberais contribuíram poderosamente para criar e depois intensificar a crise da Covid.

O controle mundial pós-pandemia

Os beneficiários muito ricos e poderosos dos programas neoliberais agora estão trabalhando para moldar a sociedade pós-pandemia. Uma investida central do neoliberalismo hoje é desmantelar a sociedade civil organizada e diminuir a preocupação dos governos com o bem estar do povo.

Os primeiros atos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80 foi destruir os sindicatos de trabalhadores. Reagan trouxe trabalhadores temporários para substituir os grevistas, uma prática logo seguida pelas grandes empresas privadas. Economistas proeminentes atribuem a desigualdade profunda criada já nos anos iniciais do neoliberalismo à destruição dos sindicatos, privando a classe trabalhadora de meios de defesa para uma luta de classes incessante.

Por razões de princípio, medidas duras precisam ser tomadas [ditaduras, se necessário] para assegurar que não haverá restrição popular à liberdade dos muito ricos e das corporações para expandir seu poder e riqueza. O ideal desse modelo econômico é privatizar tudo. Para o neoliberalismo não há nenhum conflito entre liberdade de um certo tipo, de um lado, e medidas duríssimas de repressão e controle, de outro. Forças poderosas estão trabalhando neste momento para garantir que no mundo pós pandêmico elas retenham as principais armas da luta de classes incorporadas pela doutrina neoliberal.

Para entender o neoliberalismo, devemos olhar as ideias essenciais expostas no discurso de posse de Reagan [na presidência dos Estados Unidos, em 20/01/1981] quando ele disse que ‘neste momento de crise, o governo não é a solução para os nossos problemas. O governo é o problema’. Isso não significa que desapareçam as decisões a nível nacional, pelo contrário. Elas simplesmente são deslocadas para as mãos dos senhores da humanidade: as mega empresas e as instituições financeiras que eclodiram em escala durante os anos neoliberais. Para Milton Friedman, a responsabilidade das empresas é unicamente enriquecerem. Não importa o impacto que isso venha a ter sobre os outros, incluindo o povo. ‘Tudo para nós mesmos e nada para mais ninguém’. Isso foi dito em 1776 e hoje continuamos a ver esse tipo de mentalidade.

Não é difícil prever as consequências de se entregar as decisões para instituições tirânicas cujo objetivo é enriquecer. A Rand Corporation, uma organização quase governamental de pesquisa dos Estados Unidos, estima que a transferência de riqueza de 90% da população para os muito ricos (1% da população) teria sido no valor de 47 trilhões de dólares. Nos Estados Unidos, os salários reais para trabalhadores homens caíram durante os 40 anos de ataques furiosos do neoliberalismo, juntamente com a perda de benefícios de segurança social.

A democracia política, sempre profundamente imperfeita, diminuiu porque cada vez mais vemos a democracia política subordinada à riqueza e ao poder das empresas, que são as donas da humanidade. 90% da população se considera não representada, porque seus próprios representantes estão ouvindo outras vozes – aquelas que vão financiar sua próxima campanha política. Os assessores parlamentares têm que lidar com um enxame de lobistas, que na verdade são quem escreve as leis no nosso país.

Assim, podemos chegar nas raízes da raiva, do ressentimento, do desprezo que existe hoje pelas instituições, facilmente aproveitados por demagogos que fingem defender as massas despossuídas, enquanto as esfaqueia pelas costas, deslocando a culpa pelo mal estar das massas para alvos mais vulneráveis, que são os negros, os imigrantes, o “perigo amarelo”, seja qual for o veneno que vai por baixo da vida social. Uma visão de futuro agora sendo buscada ativamente pelos setores dominantes é a perpetuação dessa monstruosidade, em formas ainda mais duras. Nós vamos sofrer mais vigilância, mais controle, mais atomização e fragmentação e mais precariedade para a grande massa da população. Essa é uma visão do futuro.

Uma outra visão é aquela que está sendo promovida pelo Fórum Social Mundial. A visão de um mundo em que o povo é quem toma controle sobre seu próprio destino, em comunidades de autogovernança e também controle de seu lugar de trabalho, se livrando desses senhores donos e de suas instituições repressivas. Um mundo que vai manter o ideal liberal forte, que há muito tempo foi eliminado. Nós devemos substituir os grilhões sociais por laços sociais. Um mundo que vai corporificar a cultura da solidariedade e da ajuda mútua, com a participação direta do povo em todas as suas esferas, por cidadãos bem formados e engajados, devotados ao bem comum. Esta visão não é utópica. Ela pode ser realizada. E precisa ser realizada de alguma maneira, se o experimento humano ainda quiser sobreviver.

Estamos vivendo um momento formidável da história humana: a confluência de crises que são de uma gravidade tremenda. A não ser que a gente consiga resolver esses desafios, e logo, será uma perda de tempo tentar contemplar a forma de uma sociedade pós-pandêmica, porque simplesmente não haverá uma sociedade pós-pandemia. Isso não é exagero.

A menos grave dessas crises que estamos enfrentando é essa que está consumindo a atenção e preocupação de todos: a pandemia. Mais cedo ou mais tarde, a pandemia será contida. A um custo terrível, um custo desnecessário, como nós podemos ver na parte rica das sociedades que conseguiram lidar com a pandemia efetivamente. A pandemia será superada. E se a História pode nos orientar, em breve ela terá sido até mesmo esquecida.

Pense um pouco na chamada Gripe Espanhola, há um século atrás. O número de mortes foi colossal. Se estima que 50 milhões de pessoas morreram. Considerando o tamanho da população hoje, isso seria o equivalente a 300 milhões de pessoas mortas, um desastre inimaginável. Mas acontece que a Gripe Espanhola foi esquecida. Eu nasci poucos anos depois que ela apareceu. Mas eu nunca ouvi falar na Gripe Espanhola quando era criança. Só aprendi sobre ela através dos livros de História. Se nós revivermos aquela experiência, nós estaremos enfrentando grandes dificuldades.

Outras pandemias de Coronavírus muito provavelmente virão. E talvez sejam até mesmo mais graves que esta pandemia, por causa da destruição do habitat natural e do aquecimento global. Além do mais, até agora nós tivemos sorte com uma pandemia recente de Coronavírus, que era altamente contagiosa, mas não muito letal, como a atual, ou uma altamente letal, mas não muito contagiosa, como a Ebola. Talvez não tenhamos tanta sorte na próxima vez.

Essas criaturas espertas têm muitos truques debaixo das mangas. Nos últimos anos, os cientistas nos disseram claramente o que precisa ser feito, mas não foi feito. As grandes instituições e empresas farmacêuticas super ricas não estavam interessadas, graças à lógica capitalista. Não seria lucrativo preparar-se para um desastre que ocorreria dentro de alguns anos. O governo dos Estados Unidos e alguns outros possuem laboratórios fantásticos, que de fato proveram descobertas básicas importantes para medicamentos e vacinas que depois são colocadas no mercado em busca do lucro, dentro do nosso sistema econômico de subsídio público para o lucro privado. Os governos foram neutralizados por essa variante, destrutiva, do capitalismo neoliberal. Os governos têm que ficar de fora dos assuntos das empresas privadas, exceto, é claro, quando essas empresas privadas se beneficiam de presentes dados pelos contribuintes do Imposto de Renda.

O desastre poderia ter sido pior pela incompetência e até, em alguns casos, pela malevolência das lideranças políticas. Nós estamos ouvindo dos cientistas os mesmo avisos sobre como prevenir o desastre. Mas conhecimento não é suficiente. Nós temos que levar o conhecimento para a prática. A pandemia que está em andamento e as que virão constituem uma das crises de hoje em dia.

Uma outra crise, mais séria, é o aquecimento do globo. A urgência dessa crise em desenvolvimento foi sublinhada, mais uma vez, há poucas semanas, quando a organização mundial para a meteorologia divulgou seu relatório mundial sobre o estado do meio ambiente global. Esse relatório avisa que se a gente seguir o atual rumo, em breve nós chegaremos a pontos de alerta irreversíveis. Em breve poderemos chegar ao que eles chamam de “terra estufa”, estabilizando a temperatura a 4, 5 graus Celsius acima dos níveis da era pré-industrial, bem acima dos níveis considerados cataclísmicos. Esse estudo conclui que é mais urgente que nunca prosseguirmos com a mitigação desse efeito estufa. A única solução é nos livrarmos dos combustíveis fósseis na produção de energia, indústria e transporte. O IPPC estabelece uma data para atingir esse resultado muito em breve, no meio deste século.

Quanto à pandemia, existem meios que estão sendo implementados, mas apenas em parte. Esses esforços precisam ser acelerados, e logo, senão o jogo acabou. Cientistas respeitados nos dizem que nós temos que ligar o “botão pânico” agora. E eles não estão exagerando.

Uma outra crise, de escala comparável, é a ameaça cada vez maior da escalada das armas nucleares, que recebem muito pouca atenção fora do círculo dos especialistas, no qual se reconhece que ela é extremamente grave. A solução para as armas nucleares é óbvia: devemos livrar a terra dessas monstruosidades. Passos importantes foram dados. Na última sexta feira [22/01/21], o Tratado das Nações Unidas para Proibição de Armas Nucleares entrou em vigor, apoiado por 122 nações, apesar de que, infelizmente, nenhuma das potências nucleares apoiou esse tratado. Isso precisa ser mudado. Mesmo insuficientes, existem movimentos e ações significativas que podem ser tomadas. [Apesar de ter sido o primeiro país a assinar o tratado, em 2017, o Brasil não o ratificou até agora, tolhido pela ‘política externa’ do governo Bolsonaro.]

Todas essas crises são internacionais. Elas não conhecem fronteiras nem barreiras. Elas precisam ser confrontadas através da solidariedade internacional. Neste caso, a Margaret Thatcher estava correta: “não há nenhuma alternativa”.

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NR: Transcrição livre sem a revisão do autor. Para versão original em vídeo clique em https://www.youtube.com/watch?v=RFEBMDfYmSo