Nomear algo é apropriar-se do mundo. Como uma criança, que desde a primeira infância vai identificando o que está à sua volta, sempre aprendendo ao identificar e nomear. Entretanto, vivemos num mundo de saberes deslocalizados com capacidade técnica de reproduzir qualquer coisa em qualquer lugar para vender tudo a todo mundo, desde que haja demanda. A produção e o consumo de massa, o moldado e o pré-moldado. O não lugar do fast food.
Uma indicação geográfica é o contrário disso, pois nasce de saberes localizados, que tem a ver com ativos territoriais específicos, a começar pelas pessoas que vivem lá. E há também o bioma, a aptidão do solo, a altitude e a natureza potencializada para gerar o melhor, associado ao trabalho das pessoas que fazem parte daquela paisagem. Perde-se no tempo a identificação de um produto com seu lugar de origem. Por exemplo: a associação do azeite com o Mediterrâneo é um fenômeno cultural total, o azeite é o Mediterrâneo mesmo antes da era cristã. História, tradição e cultura não são avessas ao que de melhor a técnica e a ciência podem oferecer em todos os campos do conhecimento. Afinal, porque só os grandes empreendimentos do agronegócio haveriam de ser demandantes de conhecimento e inovações?
O livro “Terra, sabor e cultura – o café da Mantiqueira de Minas” de Maria Helena Facirolli Sobrinho é sobre o café da Mantiqueira de Minas, sua história até 2021, quando alcançou a condição de uma Denominação de Origem, um degrau mais alto depois da Indicação de Procedência, as duas formas de indicação geográfica presentes na legislação brasileira.
A base do livro foi sua tese de doutorado desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovações em Agropecuária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCTIA/UFRRJ). Maria Helena Facirolli é uma cara colega da UFRRJ do Instituto de Três Rios/RJ e tive o prazer de orientá-la. Aqui se apresenta uma versão revista e ampliada da tese, com os avanços mais recentes.
Conheço a Serra da Mantiqueira desde criança, especialmente a região das estâncias hidrominerais. Sempre me tocou a qualidade do clima, do ar, o sol e o frio transparente dessas montanhas. Além da beleza, do clima e da qualidade do solo e das suas águas, a história da Mantiqueira sempre esteve ligada à saúde em geral, especialmente no tratamento de problemas pulmonares. Tudo isso criou bons motivos para que se tornasse um polo de atração de visitantes que, para além da sua beleza, estava vinculado à qualidade de vida. Isso resultou numa oferta hoteleira diversificada que tem tudo para fortalecer um círculo virtuoso recíproco e favorável aos cafés de qualidade com a marca do território.
Antes do desenvolvimento da pesquisa, em nossas conversas iniciais, havia o interesse de tratar de inovações no âmbito da agricultura familiar. Eu já trabalhava com as indicações geográficas nessa perspectiva e fiquei muito feliz pela forma como a Maria Helena aceitou a proposta e tomou para si o tema e a identificação com o território da Mantiqueira de Minas.
Uma agricultura de pequena e média escala, o que denominamos genericamente de agricultura familiar, não pode competir com a produção baseada em economias de escala, característica das commodities na agricultura industrializada, como a soja, onde os custos fixos unitários são reduzidos na medida em que a produção aumenta. Nesse sentido, as informações e análises apresentadas nesse livro procuram mostrar que as indicações geográficas podem ser um espaço privilegiado para as pequenas e medias propriedades rurais organizadas em formas associativas se tornarem um segmento destinado a produtos diferenciados e de qualidade que estão ancorados num território que é seu lugar de origem. Mais ainda em regiões montanhosas, pouco aptas para a agricultura industrializada.
No livro se encontra tudo que deve fazer parte de uma boa pesquisa: informação, análise, referências conceituais, normativas e, como se trata de um estudo de caso, o trabalho de campo que envolve entrevistas e observação direta. Tudo isso está alinhado para apresentar o percurso da produção de café na vertente mineira da Mantiqueira desde sua origem até a obtenção da Indicação de Procedência e, mais recentemente, a Denominação de Origem, que significa uma âncora mais profunda no território. A ênfase está ligada ao passado mais recente, quando se iniciaram os esforços organizados no sentido de avançar na coesão e na confiança necessárias para trabalhar associativamente e conquistar o reconhecimento da Indicação de Procedência e da Denominação de Origem no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), órgão público responsável pelo aval às indicações geográficas no Brasil.
A conquista de cada uma das indicações geográficas requer um esforço conjunto e organizado que, além dos produtores diretamente interessados, envolve uma constelação variada de atores sociais em diferentes configurações, cada uma com suas singularidades. No caso analisado, os produtores estavam organizados na Associação dos Produtores de Café da Mantiqueira (APROCAM), Cooperativa Regional Agropecuária de Santa Rita do Sapucaí (COOPERRITA), Cooperativa Regional dos Cafeicultores do Vale do Rio Verde (COCARIVE), Cooperativa Agropecuária do Vale do Sapucaí (COOPERVAS) e nos Sindicatos dos Produtores Rurais de Carmo de Minas e de Santa Rita do Sapucaí. A partir daí, foi sendo construída uma articulação que envolveu uma variada gama de organizações públicas a nível municipal, estadual e federal. Esse processo em que Estado e mercado não se opõem e criam sinergias foi analisado em detalhe.
A perspectiva do livro foi apresentar o tema das indicações geográficas aplicado ao caso da Mantiqueira de Minas. Além da discussão teórica, o livro contextualiza e apresenta os resultados exitosos, como a conquista de novos mercados, incluindo a internacionalização, assim como seus limites e suas possibilidades. Afinal, uma indicação geográfica traz consigo uma nova forma de produzir e de vender um produto de qualidade e diferenciado pela origem e que pertence aos seus produtores. Isso não é trivial e implica em novos desafios.
A pesquisa desenvolvida é uma das formas da universidade pública, no caso a UFRRJ e o PPGCTIA, dar seu retorno à sociedade na medida em que a criação e a transmissão do conhecimento devem estar voltadas para formar cidadãos conscientes e qualificados e profissionais comprometidos com questões socioeconômicas e ambientais para atuar na sociedade e nos mercados. Trata-se de um trabalho socialmente útil e necessário que contribui, servindo de estímulo a todos, especialmente aos que vivem e trabalham no entorno da Mantiqueira de Minas.
Boa leitura!
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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