Desde o advento da máquina a vapor, do modo de produção fabril e da expansão do capitalismo, a exploração do trabalhador é a tônica das sociedades modernas. No âmbito internacional, com vistas à criação de um arcabouço protetivo mínimo dos trabalhadores, foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Tratado de Versalhes de 1919. A proteção internacional dos trabalhadores, entretanto, não se mostra forte o suficiente para contrabalançar os efeitos deletérios da exploração capitalista.

O paradoxo da pós-modernidade se aprofunda continuamente: por um lado, vivemos um momento único, no qual o desenvolvimento tecnológico poderia possibilitar, pela primeira vez na história humana, a extinção de diversas mazelas sociais, como a fome; por outro lado, o que vemos é o oposto, e esse mesmo progresso tecnológico vem atrelado à concentração dos meios produtivos e da renda nas mãos de alguns poucos indivíduos e países. Há, portanto, o recrudescimento da miséria e da pobreza em praticamente todo o globo.

O Brasil não escapa dessa teia da desigualdade. Pelo contrário, nos últimos anos, com o crescente desmonte dos direitos trabalhistas brasileiros, a exemplo da reforma trabalhista de 2017 (Lei no 13.467, de 13 de julho de 2017) e da reforma previdenciária de 2019 (Emenda Constitucional no 103, de 12 de novembro de 2019), o país é uma das principais vitrines das desigualdades sociais no mundo. Nesse contexto sinistro, as normas do Direito Internacional do Trabalho e sua hierarquia no ordenamento jurídico brasileiro se mostram cada vez mais fundamentais na defesa dos trabalhadores.

A OIT, uma das mais antigas organizações internacionais em funcionamento, tem uma atuação ambivalente na proteção dos trabalhadores. Em um front, ela é um órgão executivo, que elabora e executa programas de promoção social, por meio da cooperação com os membros da comunidade internacional. Em outro, ela é um órgão legislativo, que opera fundamentalmente na formação e no desenvolvimento do Direito Internacional do Trabalho.

Aqui importa analisarmos a atividade normativa da OIT, que se dá por meio da elaboração de “convenções” e “recomendações”. Ambas são produzidas por meio do voto de todos os Estados-Membros durante a Conferência Internacional do Trabalho, que se realiza anualmente. De modo similar às convenções emanadas da Organização das Nações Unidas, as convenções da OIT são normas internacionais desenvolvidas coletivamente, com vistas a criar obrigações internacionais para os Estados que as ratificarem.

No Brasil, as convenções da OIT seguem o mesmo padrão de internalização que a maioria dos tratados internacionais, com uma exceção relevante. A partir da Emenda Constitucional no 45, de 30 de dezembro de 2004, e particularmente desde o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal expresso no RE 466.343, julgado em 2008, reconhece-se atualmente que as convenções da OIT, por tratarem majoritariamente de direitos humanos, são hierarquicamente superiores às leis e inferiores apenas à Constituição. Ou seja, têm status “supralegal”.

Em regra, os tratados internalizados no Brasil têm o mesmo status que as leis e, portanto, poderiam ser revogados pela promulgação posterior de outra lei. A partir da Emenda Constitucional no 45/2004, os tratados que tratam sobre direitos humanos e que sejam aprovados por 3/5 dos parlamentares em dois turnos de votação têm status de emenda constitucional. Somente a edição de uma emenda constitucional permitiria, portanto, que o Brasil saísse desses tratados de direitos humanos. Pode-se mesmo argumentar que nem assim esses direitos humanos poderiam ser revogados, na medida em que o art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal proíbe qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais.

E como ficaram os tratados de direitos humanos que foram internalizados antes da Emenda no 45 ou que fossem internalizados pela aprovação da maioria simples dos parlamentares? Em 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu que esses direitos humanos teriam natureza supralegal, ou seja, seriam superiores às leis, mas inferiores à Constituição Federal.

O reconhecimento do status supralegal tem efeito direto nos direitos dos trabalhadores brasileiros, porquanto é inegável que as convenções da OIT são normas de proteção dos direitos humanos. A proteção dos trabalhadores já se encontrava na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Na Constituição brasileira, os direitos humanos estão majoritariamente garantidos no “Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e, dentro desse Título II, está a proteção dos trabalhadores (Capítulo II – Dos Direitos Sociais). Em outras palavras, direito do trabalho é espécie do gênero direitos humanos.

Assim, as convenções da OIT podem ser internalizadas ao ordenamento jurídico brasileiro por duas maneiras: pelo procedimento tradicional de internalização dos tratados internacionais gerais (maioria simples), ou pelo procedimento previsto no art. 5o, §3o, da Constituição Federal (maioria de 3/5). Infelizmente, até o presente momento, todas as convenções da OIT internalizadas no Brasil foram aprovadas no Congresso Nacional por votação da maioria simples. Aguardemos que, no futuro, as convenções da OIT sejam internalizadas com aprovação de 3/5 e recebam o status constitucional as internacionais que merecem. Até lá, porém, não se deve relegar as normas da OIT a um papel secundário.

É bem verdade que, apesar do contínuo avanço do Direito Internacional do Trabalho promovido pela OIT, a proteção dos trabalhadores por essas normas internacionais ainda está, em regra, muito aquém daquela garantida pela legislação interna no Brasil. Por exemplo, enquanto a proibição do trabalho infantil já havia se tornado matéria constitucional no Brasil na nossa Constituição de 1934, somente com a Convenção no 138, de 1973, houve a proibição geral do trabalho infantil no âmbito internacional. A rápida dilapidação dos direitos dos trabalhadores brasileiros nos últimos anos, entretanto, parece indicar que tal diferença protetiva pode tornar-se cada vez mais minguada no futuro próximo.

Como são normas supralegais, as leis trabalhistas brasileiras devem respeitar as convenções da OIT internalizadas no país. Ou seja, além do tradicional controle de constitucionalidade, as regras trabalhistas atualmente também devem passar por um “controle de convencionalidade”. Se for observado qualquer conflito entre a legislação infraconstitucional e o tratado de direitos humanos internalizado pelo Brasil, a primeira deve ter sua eficácia paralisada imediatamente. Nesse contexto, as normas da OIT despontam como uma possível barreira jurídica ao desmonte dos direitos dos trabalhadores brasileiros.

Como se observou na reforma trabalhista levada a cabo em 2017, bastou uma simples lei ordinária, aprovada a toque de caixa logo após o golpe contra a Presidenta Rousseff, para extinguir diversos direitos dos trabalhadores. Tal reforma, realizada pela Lei no 13.467, poderia e ainda pode ser questionada judicialmente, mediante controle de convencionalidade, com base nas normas da OIT internalizadas pelo Brasil.

A OIT, por meio de seu Comitê de Especialistas sobre a Aplicação de Convenções e Recomendações, já declarou expressamente, em seu Application of International Labour Standards 2018 (páginas 59-60)1, que a reforma trabalhista brasileira de 2017 violou convenções internalizadas pelo Brasil. Por exemplo, a prevalência do “negociado sobre o legislado”, consagrada naquela fatídica lei, é contrária ao objetivo de promover negociações coletivas livres e voluntárias com o objetivo de garantir condições mais favoráveis que as já previstas em lei, constante nas Convenções no 98 e no 154 da OIT, ambas internalizadas no Brasil.

A sana do governo Bolsonaro/Guedes contra os direitos trabalhistas e a favor do capital tem aumentado fortemente a precarização das relações de trabalho, em completa desconsideração a diversas Convenções da OIT internalizadas pelo Brasil. Não à toa, o Brasil é alvo de questionamentos na OIT, mais recentemente por conta das nefastas condições de trabalho no país durante a pandemia da Covid-19.

Note-se que a atuação do governo federal na pandemia já está sendo questionada no Conselho de Direitos Humanos da ONU, no Tribunal Penal Internacional e agora na OIT. As violações brasileiras a diversas convenções (no 98, 144, 154, 155) são muitas. Para citar um exemplo, temos a diabólica Medida Provisória no 927, de 22 de março de 2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública. O art. 29 afirma categoricamente que “Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.” Ora, isso impede que os trabalhadores brasileiros acometidos pela doença possam requerer benefícios da Previdência Social. A própria OIT já havia recomendado a todos os Países-Membros que reconhecessem a Covid-19 como doença profissional.

A reforma trabalhista de 2017 e a medida provisória de 2020 são apenas exemplos do projeto de contínua precarização da proteção dos trabalhadores brasileiros adotado pelos dois últimos governos brasileiros.

A luta entre capital e trabalho sempre foi injusta e pendeu ao primeiro. Aos trabalhadores resta defender seus direitos penosamente conquistados ao longo de décadas de luta. Um dos canais de defesa deve ser o contínuo questionamento das novas leis que reduzem os direitos trabalhistas. Para isso, é fundamental que trabalhadores, sindicatos e advogados conheçam e utilizem as normas da OIT internalizadas pelo Brasil. Estas têm hierarquia superior às leis e, portanto, devem ser respeitadas. Ademais, essa luta jurídica pode e deve ser realizada em todos os rincões do país, na medida em que o controle de convencionalidade pode ser feito em qualquer juízo trabalhista brasileiro. Nesse combate injusto entre capital e trabalho, para os menos abastados o direito pode e deve ser utilizado como instrumento de luta.

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