A tradição regulatória do trabalho no Brasil tem sido a de se antecipar, em geral, aos potenciais riscos impostos durante os momentos históricos de grandes transformações econômicas e sociais. Ainda sob a vigência da escravidão, por exemplo, o Império se adiantou à realidade que estava por chegar, definindo, em 1830, a regulação do contrato de prestação de trabalho entre brasileiros e estrangeiros livres.
Com a proibição do exercício do labor forçado, a livre expansão do capitalismo foi acompanhada por enorme potencial explosivo diante da exploração sem limites na crescente contratação da mão de obra. Por isso, logo no início da República, em 1891, o uso da mão de obra infantil em fábricas passou a ser, por exemplo, objeto de fiscalização; e em 1903 a existência de sindicatos passou a ser oficialmente permitida no país.
A própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), introduzida em 1943, não deixou de se orientar para a mão de obra exclusivamente urbana, quando um pouco mais de 10% do total dos ocupados se enquadravam no estatuto do emprego assalariado formal. Pelo projeto tenentista de construção da sociedade urbana e industrial no Brasil, as massas sobrantes no campo, herdadas da sociedade agrária, seriam elevadas à cidadania laboral garantida pelo acesso aos direitos sociais e trabalhistas estabelecidos pela carteira do trabalho assalariado somente possível nas cidades.
Naquela oportunidade, a expansão nacional do mercado de trabalho urbano era a vanguarda das mudanças no Brasil. Por representar o passado a ser superado, o conjunto dos trabalhadores rurais que constituía a maior parte dos ocupados somente começou a ser integrado, lenta e gradualmente, na regulação pública a partir do ano de 1963, com a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural.
Coube ao Estado assumir centralidade regulatória diante do avanço do operariado e da burguesia industrial, as duas principais classes sociais que estruturavam a sociedade urbana e industrial em constituição. Considerado pelo presidente Getúlio Vargas (1930-1945) “O Ministério da Revolução”, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado um mês após a Revolução de 1930, assumiu papel central na institucionalização, regulamentação e organização do mercado de trabalho assalariado.
A partir de 1990, quando o Brasil ingressou de forma passiva e subordinada na globalização conduzida pelos Estados Unidos, o assalariamento estancou e o emprego formal sofreu considerável deterioração. Concomitante com a ruína da sociedade urbana e industrial, a CLT foi sendo atacada, fazendo com que o Estado passasse a estar mais preocupado com o passado do que com o próprio futuro do presente, ao longo do primeiro quarto do século 21.
É nesse sentido que ganha importância na atualidade o entendimento acerca da emergência do mundo do trabalho digital que, impulsionado pelas diversidades das tecnologias de informação e comunicação, constitui o vetor de vanguarda das mudanças econômicas e sociais no país. Enquanto frente de expansão das ocupações novas e velhas, prolifera uma diversidade de atividades que se combinam virtualmente associadas à presença de trabalhadores que não são sequer reconhecidos como empregados.
Pela conformação de uma nova classe trabalhadora que se expande através das ocupações digitais, prevalecem enormes desafios quanto à identidade e pertencimento, bem como quanto à organização e recorte geográfico. Da mesma forma, as tradicionais instituições pertencentes ao antigo mundo do trabalho como entidades governamentais, sindicais e judiciais também registram dificuldades consideráveis para mobilizar e conectar as novas formas de trabalho ainda não padronizadas.
No contexto nacional de profusão de modelos de negócios cada vez mais operados pela coleta de dados e otimização dos processos de trabalho próprios da dispersão e fragmentação do labor remoto e terceirizado, a gestão algorítmica tem predominado. A assimetria de poder e de informação é inegável, tornando a retribuição monetária mínima diante da jornada de trabalho elevada, inclusive muitas vezes não remunerada, que acompanha a insegurança do rendimento e a ausência de compensação ao uso de equipamentos próprios da ocupação.
Ao mesmo tempo, o surgimento de novos sujeitos sociais ocorre condicionado a outros desafios em relação à formação da identidade coletiva e ao pertencimento solidário diante da ausência do status de emprego reconhecido legalmente e da natureza atomizada e dispersa do mundo do trabalho digital. A onipresença da digitalização faz desaparecer a fronteira que até então separava o tempo de labor do não labor, cujos impactos superam o caráter e a organização do trabalho, avançando sobre a saúde mental dos trabalhadores.
A digitalização da economia e da sociedade vem acompanhada de abusos da hiperconectividade gerados pela infração dos direitos de privacidade, vigilância massificada, elevação do tempo de trabalho, isolamento e intransparência nas relações profissionais. O resultado tem sido, em paralelo ao aumento da produtividade e dos lucros concentrados em poucos, o flagelo da precarização laboral e das doenças depressivas e de distúrbios psicossociais dependentes do uso de drogas legais ou até ilegais.
A regulação da digitalização e dos sistemas de inteligência artificial requer novas diretivas ao trabalho hiperconectado, capaz de garantir proteção social e trabalhista e padrões mínimos de saúde e segurança laboral. Novas instituições regulatórias e a reformulação das entidades de representação de interesses são necessárias para que o progresso da gestão algorítmica prevaleça com transparência e ética, sem decisões discriminatórias e arbitrárias que aprofundam a desigualdade e a injustiça.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.