O capitalismo se baseia no princípio da competição de uns com os outros para que possam sobreviver. A perspectiva da concorrência encontra-se tanto entre os que possuem os meios para produzir riqueza (proprietários) como entre os que quase nada têm exceto sua própria força de trabalho (não proprietários).
No caso brasileiro, a instalação ainda que tardia do capitalismo não deixou de estabelecer o assalariamento como a medida central pela qual a desigualdade avançou no interior do conjunto da sociedade constituída majoritariamente por não proprietários. Nessa perspectiva, a condição de cidadania regulada por direitos sociais e trabalhistas ganhou expressão maior entre as décadas de 1920 e 1980, quando perdurou o auge da sociedade salarial impulsionada pelo rápido crescimento econômico.
Com a estagnação econômica consolidada a partir dos anos de 1980, o descenso do assalariamento, sobretudo do regulado formalmente, transcorreu simultâneo à incorporação de parcelas crescentes da população não proprietária à condição de inatividade assistida por políticas de transferência de renda pública (aposentados, pensionistas e outras formas de benefícios). Para tanto, a construção dos complexos do Estado de bem estar social instaurada pela Constituição de 1988 permitiu avançar o fundo público de 23% para 34% do Produto Interno Bruto (PIB) desde a transição da ditadura civil-militar (1964-1985).
Em grande medida, o aumento da carga tributária bruta transcorreu nos elos mais fracos da sociedade. Enquanto os ricos se safaram da maior tributação, os segmentos intermediários e, sobretudo, a base da pirâmide social foram os mais afetados pela regressividade do sistema tributário brasileiro.
A penalização dos pobres, contudo, terminou sendo compensada, em parte, pelo distributivismo das políticas sociais que elevaram a sua proporção no PIB de 13,5% para 24% do PIB entre 1985 e 2014. Com isso, a proporção de beneficiados pelas políticas de garantia de renda saltou de menos de 3% para quase 30% do total da população no mesmo período de tempo.
Com isso, a incorporação crescente da população sobrante ao estancamento do processo de acumulação de capital nas últimas quatro décadas terminou por impedir a ampliação ainda mais aprofundada do desemprego aberto. Possibilitou, inclusive, a queda na taxa de pobreza e na desigualdade na distribuição da renda do trabalho.
Com a pandemia do Coronavírus em 2020, após cinco anos de regressão econômica e social no capitalismo brasileiro, a gestão da desigualdade sofreu inovações emergenciais. No que concerne à complementação de renda pública estendida aos segmentos não proprietários em ocupações não assalariadas e, inclusive, para parcela dos proprietários (pequenos negócios) isso parece ser inegável.
O ineditismo destas medidas na gestão do processo de desigualdade favoreceu temporariamente certa contenção, especialmente da pobreza. Tudo isso, ainda em experimentação, pressupõe base fiscal sustentável, bem como a alteração substancial no padrão de gestão da desigualdade em pleno início da terceira década do século XXI.
Nesse sentido, dois aspectos podem ser destacados neste final de segundo semestre de 2020. O primeiro é em relação à batalha da definição do orçamento público para o ano de 2021.
Tal como foi encaminhado pelo governo Bolsonaro, o orçamento para o ano de 2021 pouco ajudará a retomar o nível de atividade econômica. Com isso, a base fiscal deprimida não terá condições de sustentar o protagonismo distributivista do ano de 2020, podendo empurrar ainda mais o país para a barbárie social.
O segundo aspecto importante deste final de 2020 concede importância à sustentação do ineditismo das medidas na gestão do processo de desigualdade protagonizadas pelo governo Bolsonaro nas eleições municipais. Na hipótese de derrota retumbante da atual elite dirigente nas principais prefeituras do país, o impulso oposicionista implicará menor docilidade com o governo federal, podendo favorecer a priorização do enfrentamento dos problemas socioeconômicos diante da decadência nacional.
Do contrário, a permanência do atual modelo de gerência privada executada por grande parte dos prefeitos eleitos nos últimos oito anos, tende a consagrar a mesmice solidária com o receituário neoliberal. Preocupados com isso, os partidos políticos a operarem sob o guarda-chuva ideológico do centrão conseguiram ampliar o repasse de recursos públicos do governo federal aos prefeitos que passaram a dispor de maior orçamento que no ano passado para procurar gerenciar o resultado das eleições municipais deste ano.