Em 21 de janeiro passado, dia seguinte à posse de Donald Trump, em um grupo de amigos no WhatsApp, postei um texto em que especulava sobre o novo governo dos Estados Unidos. Nele, eu livre-pensava sobre o que viria após as primeiras declarações do então presidente eleito que inauguravam o que, dias depois, o militante de extrema direita Steve Bannon, recém-saído da cadeia, chamou de “flood the zone with shit”, uma boa imagem para definir o espetáculo da assinatura das dezenas de Ordens Executivas ao vivo para todo o mundo.

Passadas duas semanas, algumas questões ficaram claras para mim, muito embora permaneça algum grau de especulação – mas o terreno interpretativo está mais firme.

A primeira questão é saber se Trump inaugura um novo governo ou um novo regime político. A quantidade de desqualificações e demissões, a perseguição àqueles(as) que destoam de suas ideias, a “limpeza” de organismos governamentais federais com proibições não apenas de ideias, mas até de palavras em documentos desses organismos (um index prohibitorum ao estilo da Inquisição), tudo isso jamais foi visto no ambiente político da república norte-americana. A caça aos “comunistas” do início da Guerra Fria, liderada no Congresso pelo Senador Joseph McCarthy e operada pelo FBI, não chegou aos pés do que se apresenta neste início de Trump 2. A distinção entre o macartismo e o trumpismo atual é que lá, a caça às bruxas foi realizada pelas instituições federais e o Congresso. Agora, a caça é feita contra as instituições e com um Congresso ajoelhado. Matéria recente do jornal The Guardian (1) mostra como o trumpismo bebeu água na fonte de Victor Orbán, na Hungria, com a diferença óbvia da relevância geopolítica dos Estados Unidos. E, para coroar a atual conjuntura política nos EUA, Trump tem maioria nas duas casas do Congresso e maioria também na Suprema Corte. E, por fim, ele é inimputável enquanto estiver na Presidência. Como o ditador húngaro.

A trajetória de Orbán, que começou sua vida política como um liberal de centro-esquerda, levou-o a transformar a Hungria em uma autocracia com o domínio completo das instituições do Estado à sua feição. Sua receita foi similar à que Trump 2 está realizando nos EUA, a despeito de homenagear religiosamente o calendário eleitoral. Uma interpretação jornalística da trajetória de Orbán e do provável projeto de Trump está em uma matéria da revista Foreign Policy, publicada em 6 de fevereiro último (2). Em tradução livre, o final da matéria é; “Hoje, a Hungria é uma ditadura florescente. O regime restringiu a liberdade de imprensa, marginalizou a oposição, desmantelou os freios e contrapesos democráticos, controlou a sociedade civil, fixou leis eleitorais e neutralizou as críticas, garantindo que apenas acontecimentos extraordinários – e não eleições – poderiam destituí-lo do poder”. Em outro artigo que circula na internet, o economista Paul Krugman (3) trata essa conjuntura nos EUA como ‘Autogolpe’.

A segunda questão é um corolário da primeira. Se há um novo regime, a vida política nos EUA deve sofrer um deslocamento do tradicional embate entre democratas e republicanos no Congresso. Haverá embates, mas, em consequência do expurgo realizado por Trump, deverão crescer de importância na vida política os embates entre o Executivo e as instituições federais norte-americanas. Em novembro de 2024, havia cerca de três milhões de pessoas trabalhando para o governo federal (4), estando cerca de metade delas localizadas nas áreas de defesa, veteranos de guerra e segurança interna. Esses três milhões são os quadros que, de modo geral são chamados de Deep State e que constituem a armadura burocrática que patrocina boa parte dos mecanismos de checks and balances, muito valorizados nas análises da política norte-americana e que têm sido bastante estáveis há muitas décadas nos sucessivos governos de um ou de outro partido. Portanto, não será irreal pensar que possa haver resistência de frações desses estamentos face às intervenções destrutivas de Trump.

Nota publicada pelo New York Times em 5 de fevereiro último relata um fato que exemplifica esses embates potenciais (5). Em tradução livre: “A CIA enviou à Casa Branca um e-mail não confidencial listando todos os funcionários contratados pela agência de espionagem nos últimos dois anos para cumprir uma ordem executiva para reduzir a força de trabalho federal. Um ex-funcionário da agência classificou a divulgação dos nomes num e-mail não confidencial como um desastre da ‘contrainteligência’”. O e-mail, suspeito eu, foi entregue ao chefe da Assessoria de Eficiência Governamental, Elon Musk.

Esses fatos sugerem fortemente que, para consolidar seu novo regime político, Trump terá que travar sua primeira batalha dentro de seu próprio país. Mas resta ainda um outro argumento para reforçar essa minha suspeita. Isso porque essa atual versão do ‘Deep State’ foi moldada por dois vetores principais nos últimos 30 anos e pouco mais: um deles foi a proposta, hoje inteiramente falida, da unilateralidade geopolítica com a correspondente tentativa de impor a democracia de corte liberal ao mundo, seja mediante ‘soft power’, seja mediante guerras localizadas; o outro, a face econômica desse primeiro vetor e também em fase claudicante, foi a globalização e a abertura comercial como receitas e pressupostos para aquela imposição política. Foi nessa armadura político-ideológica que a burocracia federal nos EUA foi educada, tanto em governos do Partido Democrata quanto Republicano. Pois o modo Trump de governar é oposto a tudo isso. Seu ministério é um combo de negocistas, pessoas da mídia, ideólogos e alguns políticos estaduais. No texto de Krugman já citado, ele ressalta a ignorância quase total dessa equipe nos assuntos da gestão pública federal.

Há todo um outro capítulo de análise a ser feito, que trata das repercussões globais e locais da política externa dos EUA sob Trump. Certamente, terão efeitos relevantes no destino do novo regime político norte-americano. Não tratarei desse assunto aqui por falta de informação e de espaço. No entanto, estou bastante convencido de que a volta dos EUA a seu regime tradicional de democracia liberal (a despeito de todas as péssimas experiências que este regime ofereceu à boa parte do planeta), está essencialmente nas mãos do seu povo e das suas elites.

Referências:

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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