Na sequência das trapalhadas contra a economia brasileira promovidas de Washington pela dupla de herdeiros da ditadura, os bolsonaristas mais uma vez saíram às ruas para protestar contra as deliberações do STF e contra os ritos e instituições de um Estado Democrático de Direito. Recuperando ligeiramente o fôlego dos protestos que desde fevereiro vinham minguando, esbravejaram aos céus paulistanos com deliberado destempero. Do alto do caminhão na Paulista, um intrépido Nikolas Ferreira, deputado por Minas Gerais, lançou impropérios e ameaças contra o ministro Alexandre de Moraes. A cena tinha algo de teatro amador e infantojuvenil. Ninguém deveria ser acusado de produzir imprecações contra quem quer que seja, mesmo contra autoridades constituídas de uma democracia. Imagino que xingar seja, além de vocação individual, também uma necessidade básica do ser humano, embora não de todas as civilizações – ouvi dizer que não há palavrões em japonês. É, portanto, problema de cada um e ninguém deveria meter o bedelho. Mas lá do alto do caminhão de som, o cérebro desarrumado do pequeno Nikolas foi misturando ofensas com ameaças no decorrer de um desanimador amontado de frases.
De alguma forma íntimo do ministro do Supremo – afinal um ministro da Corte Suprema e um deputado devem, dentro da Lei, ter a mesma estatura, ainda que, como sujeitos políticos, possam não ter – a sombra agigantada do pequeno Nikolas advertiu: “Alexandre de Moraes, você é um cara corajoso. Mas sem a toga, você é nada.” De fato, a toga simboliza a investidura de um membro do STF, a transformação de um simples cidadão em ministro do Supremo. Sendo assim, cabe perguntar se é ou não ao ministro que o pequeno Nikolas está convocando para a briga (na porta do bar, do outro lado da rua, onde quer que o desafiado deseje, suponho)? Ou se é ao cidadão Alexandre que Nikolas está chamando para medir machezas.
Me ocorre que o desafio esteja assim mal formulado por duas razões, pelo menos. A primeira, de natureza involuntária, resulta da estatura mental do deputado por Minas Gerais (não foram apenas uma ou duas as vezes em que teve sua inteligência ridicularizada por oponentes em colóquios da internet). A segunda é inteiramente proposital e o que pretende é não deixar clara a natureza do enfretamento. Mantendo a ambiguidade do desafio, Nikolas tem uma rota de fuga para o caso de o ministro aceitar um embate ali mesmo, num ringue armado na Praça dos Três Poderes, já que a estatura física de um e outro provavelmente faria do pequeno Nikolas trapo amarrotado sobre a lona.
Mas segue o orador sobre a carroceria do caminhão (não à frente do radiador): “O STF não é dono do Brasil, o Brasil está acima do STF”. O que a frase binária parece estar querendo dizer é que eles são o Brasil e, por consequência, estão acima do Supremo – e do que quer que se interponha às suas demandas. O conjunto da obra é uma fraseologia mal misturada e mal costurada, instituições com pessoas, um pedaço do país com o país inteiro, ameaças de anões e vitupérios de gigantes, mas é assim que parece ser a cabeça do pequeno Nikolas. Por isso é preciso seguir tentando esclarecer qual é o exato sentido das advertências. “Não vamos nos curvar a você” – a você, quem? Ao cidadão ou ao ministro e ao impessoal STF? Se é ao Alexandre, resta esclarecer o motivo da rixa. Até o momento, não vieram a público as razões pessoais dessa mágoa profunda com Alexandre de Moraes. Portanto, se existem, não as conhecemos. Por outro lado, até onde se sabe o Supremo Tribunal Federal, na figura de um dos seus ministros (porque assim determina o rito), a quem está processando é a um determinado grupo político, não por incabíveis razões pessoais, mas por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito – liderada justamente por aquele que poderia liderá-la, o chefe do clã Bolsonaro.
Trazida à luz, a frase do pequeno Nikolas diz com clareza lapidar qual é, e sempre foi, a intenção do bolsonarismo: eles não pretendem se curvar às deliberações do órgão máximo do Poder Judiciário. Assim como no 8 de janeiro demonstraram não se curvar aos resultados das urnas. É à Democracia, portanto, que eles não se curvam. O discurso do deputado mineiro na av. Paulista é a reafirmação do que já haviam dito os infelizes que assaltaram o Palácio do Planalto e a sede do STF em 2023. Refugiados na capital do Império e à sombra do Imperador, o filho do capitão (e ex-presidente derrotado nas urnas) e o neto do ditador (aquele do “prendo e arrebento”), enquanto seguem conspirando para submeter a ordem constitucional democrática e retomarem o poder, emitem orientações para que seus seguidores voltem à carga.
De onde vem essa bravura toda? A pergunta não é retórica. É verdade que são moleques, marmanjos, mas moleques. Mas mesmo os moleques têm lá sua dose de juízo, sobretudo quando se trata de defender o próprio couro. Nem um nem o outro dos não-nomeados na sessão do STF teriam a petulância de vociferar como vociferam longe das asas protetoras do Imperador. A verdade é que em grande medida, e ainda que não tenham se dado conta, foram utilizados por Trump na sua cruzada tarifária – indício disso é que dobrada a aposta do Supremo contra as ameaças trumpistas e decretada a prisão domiciliar de Bolsonaro, nenhuma nova medida punitiva foi, até agora, anunciada pela Casa Branca. Por outro lado, a última manifestação na Paulista e sua agressiva oratória (um tom abaixo da emanada pelos fugitivos em Washington), demonstram que, apesar dos inúmeros crimes contra o país pelos quais estão sendo processados, estão longe de serem letra morta na política nacional. As mais recentes pesquisas publicadas dão prova desse fenômeno. O Datafolha informou na semana passada que praticamente a metade dos brasileiros manifesta uma evidente condescendência com os acusados de tentativa de golpe: 46% dos pesquisados se opõem à prisão de Bolsonaro.
O que tudo isso quer dizer é que a ultradireita e seu modus operandi (para lembrar a apropriadíssima expressão de Moraes) veio definitivamente para ficar, nos Estados Unidos, tanto quanto no Brasil – na Europa, quanto em alguns países do Oriente (como o Japão).
Na sessão do STF de 1 de agosto, os dois moleques (com a devida vênia aos moleques que fomos todos na meninice) golpistas não foram sequer nomeados. Era uma demonstração de que os ministros que discursaram sabiam a quem se dirigir. Quando usaram a expressão traidores da pátria, os endereçados eram notórios e o sentido não era figurado ou metafórico. Ao que se referiram foi ao conceito legal e ao país constituído como Estado nacional independente. Nada a ver com as flâmulas patrioteiras atrás das quais se escondem o clã e seus seguidores. O endereço principal, no entanto, se encontrava também em Washington, por direito e costume – e por se arrogar ordenador do mundo. Todos os que temos ainda algum juízo e consciência democrática sabemos da dramaticidade do que estamos presenciando. Há entre esse nós alguém que ainda não tenha se dado conta da onda protofascista que se avoluma a cada rotação do planeta? Talvez por isso o tom dos ministros tenha subido pelo menos umas tantas escalas acima da usual. Na língua do populacho, bateram pesado para mandar também o seu recado: o Império não é dono do Brasil, nem tampouco aqueles seus capachos que amam se fantasiar de verde-amarelo (vez ou outra mesclado ao red white blue).
Na terça-feira passada, 5 de agosto, convocados por um dos membros do clã, um grupo de parlamentares assaltaram a mesa do Congresso, impedindo a retomada dos trabalhos pós-recesso para forçar a votação da anistia para os acusados do golpe de Estado, a do ex-presidente antes que quaisquer outros.
Pouco mais de um mês antes, em 25 de junho, uma expressiva maioria de 383 deputados derrubou o decreto do governo que aumentava o IOF beneficiando a grande maioria dos brasileiros. Foi a primeira vez em mais de três décadas que um decreto presidencial foi formalmente derrubado pelo Congresso Nacional. Para a aprovação do projeto de anistia capitaneado pelo clã Bolsonaro são necessários 257 votos na Câmara e 41 no Senado. Para que o impeachment de um ministro do Supremo seja aprovado no Senado é ligeiramente mais complicado – ali é preciso a anuência de dois terços dos senadores.
Frigidos os ovos, será difícil imaginar o que pode estar por vir?
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Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “A vassalagem antipatriótica”, de Luiz Marques.